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Quase feliz



Dia 1º de novembro, de madrugada, a TV anunciou a vitória de Dilma Rousseff. Mergulhei em um estado feliz dos meus 12 anos. Como eu era orgulhoso de ser brasileiro. Ainda me lembro do 29 de junho de 1958, Dia de São Pedro. Estava no Pero Vaz, com minha mãe, em visita a uns primos. Na casa vizinha, um rádio berrava o narrador da Rádio Tupi, em ondas curtas. Ouvia-se muito a algazarra dos ouvintes, entremeada pelos gritos longos e gargarejados de gol: gol do Brasil! Os foguetes de flecha rasgavam o ar. Os balões subiram. A maioria verde-amarela, e alguns coloridos carregando uma bandeira brasileira que tremulava pendurada na cestinha. Chegando em casa, encontrei meu pai colado no rádio. Nunca vi o velho tão feliz. Militar reformado, kardecista praticante, não fumava nem bebia, mas parecia estar cheio de Ron Merino, bêbado de alegria. Exclamava: não ganhamos no Maracanã (1950), mas fomos ganhar na Suécia.

Para os meninos como eu, era um orgulho encostar em um FNM, aquele mastodonte que povoava a Rio-Bahia, com a reverência de quem tocava em uma locomotiva da Leste. Era um caminhão brasileiro. Festejávamos os estridentes DKW-Vemag, as Vemaguetes, as Rural-Willis e os espetaculares Fuscas. Era a indústria nacional. Juca Chaves debochava do Presidente JK, o Presidente Bossa Nova! Jovial, bom vivant, namorador, viciado em avião, construía a mais moderna e bonita capital do mundo. Talvez por isso, associava o presidente e sua política à bossa-nova de João Gilberto e de Elizete Cardoso. Esses eram anos dourados.

Na política, JK era um democrata. Levava com pouco fogo a golpista UDN, o virulento Carlos Lacerda, e os amotinados da Aeronáutica. Seu trunfo era o Ministro da Guerra, o general Henrique Teixeira Lott. No meu entendimento de criança, não entendi a derrota da chapa Lott/Jango. Lott representava a garantia da ordem democrática e Jango trazia o apoio dos trabalhistas às reformas. O povo não quis assim. Elegeu a chapa Jan/Jan. Um desastre. Só depois tive a resposta em uma música do meu ministro Gil: o povo sabe o que quer, mas o povo também quer o que não sabe! Todos nos lembramos do filme triste. O Brasil desceu a ladeira até o golpe de 64.

Aos 62 anos, igualmente feliz, não tenho mais o direito à inocência. A vitória de Dilma traz também apreensões. Fiquei assustado com a virulência da campanha movida nas estradas não policiadas da Internet. Saídos dos porões da ditadura, os torturadores vieram a público acusar a torturada de assassina. Saiu do baú um anticomunismo do tempo da guerra fria. Falou-se até em uma virtual Ursal, União das Repúblicas Socialistas da América Latina, formada pelo Brasil, Venezuela, Bolívia, Equador, Argentina e Cuba. Fundamentalistas católicos e pentecostais ressuscitaram o Padre Peyton e a marcha da família pela propriedade. Até o Papa, chefe de um outro estado, o Vaticano, deu declarações contra o aborto, na antevéspera da eleição. Tudo isso em proveito da candidatura de um ex-presidente da UNE, exilado pela ditadura, ex-militante da Ação Popular, que por ambição eleitoral aceitou estes apoios, e ainda apregoa ser o paladino da ética. Por tudo isso, não posso dizer que estou simplesmente feliz. Estou quase feliz.

Não basta aos cidadãos eleger Dilma. É imperativo garantir-lhe a governabilidade. Ela é o marechal Lott de Lula. Ao mesmo tempo em que deve ampliar e aprofundar o processo de desenvolvimento econômico, com distribuição de renda e com inclusão social, deve igualmente usar de toda a autoridade (e não de autoritarismo) para assegurar as liberdades individuais, a estabilidade econômica, o Estado de Direito e a ordem pública. Ela deverá ser suficientemente forte para governar segundo o mandato que recebeu das urnas, sem se abalar com as intrigas dos udenistas de sempre, com o sensacionalismo de uma imprensa conservadora, nem com a maledicência da Internet. Tampouco deverá atrelar o seu governo aos gritos radicais das ruas e dos campos. Será preciso pulso firme para resistir às provocações e às tentações, pelo bem do Brasil. Que o Misericordioso Senhor do Bonfim dê vida, saúde e coragem para a nossa presidente. Que assim seja, axé!


Ubiratan Castro de Araújo – Integrante da Academia de Letras da Bahia e diretor-geral da Fundação Pedro Calmon/SEC


Publicado pelo jornal A Tarde – em 18 de novembro, 2010.

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Gendarmeria, uma proposta demagógica

Afirma-se correntemente que a história não se repete. Mas isso só vale aos que estão atentos para as lições do passado.

No longínquo 1889, logo após a Abolição, os monarquistas tentaram preparar o que seria o Terceiro Reinado, com Isabel imperatriz e Gastón d'Orleans, marido dela, como verdadeiro regente. Fez parte do plano divulgar o mito da abolição concedida graciosamente pela princesa, para mobilizar o apoio da população negra em favor do futuro regime. Fazia também parte do projeto a desmobilização do Exército brasileiro, prestigiado após a vitória sobre o Paraguai, que se negava à subserviência perante o regime imperial. O Império passou a negar recursos para o Exército e a liberar recursos para o aparelhamento de corpos de polícia provinciais.

O próprio genro do imperador circulou pelo Brasil, a negociar com os potentados regionais a reativação da Guarda Nacional, também chamada de Guarda Não sois Nada, pela venda de patentes para civis (de onde vêm os "coronéis" do sertão) e com a promessa de distribuição de armas para as tropas de jagunços. Tudo para reduzir o Exército à expressão mínima. A reação desta instituição foi fulminante. Do marechal Deodoro, que era monarquista, até o mais simples praça, levantaram-se todos, depuseram Pedro II e proclamaram a República.

Na campanha eleitoral de 2010, o candidato do PSDB tirou da cartola uma fórmula mágica para combater o tráfico de drogas. Propõe a criação de um ministério da segurança pública, quando constitucionalmente esta é uma competência dos estados federados e, pior ainda, propõe a criação de uma outra força terrestre federal, chamada de Gendarmeria ou Guarda Nacional para a missão da guarda das fronteiras brasileiras, uma missão constitucional das Forças Armadas. Por que então usurpar funções de instituições nacionais legalmente constituídas? Logo agora que as Forças Armadas brasileiras, depois da redemocratização e da anistia geral, dão um exemplo de observância estrita do seu papel de defesa do nosso território. Também este é um momento em que o presidente Lula desencadeia um processo amplo de reaparelhamento tecnológico das forças militares, de modo que elas possam no futuro desempenhar papel de escudo das riquezas e do desenvolvimento do Brasil.

Por outro lado, para a manutenção da ordem interna, cada Estado federado mantém uma Polícia Militar, para as quais se desenvolve uma política de requalificação e de limpeza dos maus policiais. Por esta proposta dos tucanos, todas as PMs do Brasil são condenadas como inoperantes ou impotentes? Vale lembrar que em outros países onde há uma Gendarmerie, como é o caso da França, o Estado é unitário e portanto não há Federação! Nos Estados Unidos há uma Guarda Nacional, mas lá também os estados federados mantêm polícias civis e não polícias militares. O que propõe o candidato tucano, a extinção das polícias militares estaduais? Além de provocar injustificadamente os brios destas corporações federais e estaduais, o candidato em questão promete criar mais um cabide de empregos, novos cargos, salários, equipamentos e instalações para uma nova força que deverá fazer o mesmo que já fazem as existentes. É mais sensato torná-las ainda mais operacionais com o reforço da Polícia Federal, com o aperfeiçoamento tecnológico das Forças Armadas federais, com a expansão da Força Nacional composta por oficiais e praças das PMs, e, acima de tudo, com uma significativa melhoria salarial de todos os militares.

Esta infeliz proposta não passa de demagogia eleitoral, que nos leva ao risco de uma instabilidade institucional, logo agora, quando o Brasil vive um momento de paz, de crescimento econômico e de inclusão social. Afinal, não acreditamos que o combate ao crime organizado, que atua internacionalmente em rede graças ao manuseio de moderna tecnologia de informação, possa ser efetivo com o simples inchaço da burocracia de Estado, seja com a criação de um novo ministério, seja com a criação de uma Guarda Nacional. Precisamos, sim, de mais inteligência e de mais agilidade das instituições de segurança existentes.

Ubiratan Castro de Araújo

Integrante da Academia de Letras da Bahia e diretor-geral da Fundação Pedro Calmon/SEC

Publicado pelo Jornal A Tarde – 20 de outubro, 2010.

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Pelas mulheres



Em tempos de eleição, o tema da violência ocupa todas as manchetes. Os indicadores de violência são apresentados sempre em bloco, o que provoca a apreensão de todos. A responsabilidade é sempre atribuída aos governos, que decerto têm a obrigação de manter a ordem, mas que não são onipresentes. O melhor seria identificar os vários tipos de violência para entender os condicionantes de cada um. Um dos tipos de violência que vêm escandalizando o nosso País é a violência praticada por homens contra mulheres, no ambiente familiar e fora dele.

Nos últimos anos, tem aumentado o número, os requintes de crueldade e a banalização desses crimes, de modo que o cidadão comum tende a acostumar-se com eles. É o espetáculo do mundo cão. O homem recusase a pagar pensão alimentar e manda esquartejar, desossar e dar sumiço no corpo da mulher; o namorado recusa-se a aceitar o fim de um namoro e sequestra uma jovem, mobiliza a imprensa durante dias e por fim a executa impiedosamente em frente às câmeras de televisão; um velho resolve ter ciúmes de sua mulher há 30 anos e a picota com uma foice na frente dos filhos. Estes são apenas alguns exemplos mais recentes.

Nosso primeiro desafio é tentar entender o agravamento desse fenômeno, neste momento, no Brasil. Certamente que há milênios que homens espancam, violentam e matam mulheres. Mas a história nos mostra que esses tempos já estão sendo superados pela luta feminina por emancipação e por igualdade, bem como por novas condições de inclusão social, política e econômica das mulheres na vida social. Já não vivemos mais no século XIX, em que o deputado liberal baiano Domingos Borges de Barros proclamava que era preciso acabar com duas escravidões no Brasil: a dos negros e a das mulheres! A pergunta que se impõe é por que a violência contra as mulheres não diminui sensivelmente na mesma proporção dos avanços democráticos? Tendo a buscar na História da Bahia no século XVII algumas pistas. Em sociedades profundamente desiguais, a violência é uma prática de afirmação de privilégios e de supremacias de cada grupo social contra os demais grupos que lhe são imediatamente contíguos. Naquela Bahia do século XVIII, além da violência estrutural dos senhores contra os escravos, grassava a violência de homens livres pobres contra escravos, a violência de crioulos (negros brasileiros) contra africanos, havia mesmo a violência de escravos de senhores mais ricos e poderosos contra outros escravos de senhores menos ricos e menos importantes. Naquele tempo, como hoje, aumentava a violência em conjunturas em que os privilégios e supremacias são ameaçados.

No momento em que estamos construindo uma sociedade que tende para a igualdade entre homens e mulheres, antigos beneficiários do poder masculino, inconformados com a cidadania feminina, tentam pela violência privada reafirmar os seus próprios privilégios.

O que fazer? Esta é uma questão só do Estado?Arepressão exemplar dos criminosos e a proteção das vítimas são fundamentais, mas não é tudo. É preciso que os homens democratas levantem sua voz para dizer aos recalcitrantes que o prestígio e o poder em um Brasil contemporâneo não mais balançam no apêndice viril de cada um. Homens e mulheres disputam igualmente, segundo regras que levam em conta a capacidade de trabalho, a inteligência e o procedimento de cada um e de cada uma. É também preciso dizer aos machões moribundos que nós homens somos mais felizes com mulheres livres, realizadas e cidadãs.

A sociedade também tem sua palavra a dizer. Todos nós devemos apoiar firmemente o processo de promoção da igualdade entre homens e mulheres demodoa não deixar aos inconformados a ilusão de que é possível freá-lo pela violência. Em um momento eleitoral, em vez de culpar o governo, devemos aumentar a presença de mulheres em espaços de poder, de modo que elas próprias possam contribuir para a consolidação da cidadania plena, geral e irrestrita.

Podemos, sim, conclamar a todos: não cometam nenhuma violência contra as mulheres, não batam nem matem suas companheiras, pelo contrário, votem nelas.


Ubiratan Castro de Araújo

Integrante da Academia de Letras da Bahia e diretor-geral da Fundação Pedro Calmon/SEC ubiratancastrodearaujo@gmail.com


Publicado pelo Jornal A Tarde - em 02 de setembro, 2010.

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O valhacouto de oligarcas



O Dr. Plínio de Arruda Sampaio foi longe em sua indignação de católico Pio XII. Com esta expressão - valhacouto de oligarcas -, ele sentenciou o Senado Federal à pena de extinção. Refúgio de velhacos é muito forte, mas em época eleitoral faz parte da grandiloquência do PSOL. O fato é que, na última legislatura, o Senado Federal protagonizou alguns escândalos que comprometeram o seu conceito popular. A situação é mais delicada porque o Senado é a câmara revisora em um sistema bicameral.

Por definição, ela é a câmara onde sentam os mais velhos e mais experientes, com a missão de corrigir os radicalismos da Câmara dos Deputados, onde sentam os mais jovens, mais aguerridos, e representantes dos vários interesses particulares na República. Esta é a própria origem do Senado moderno, a Câmara dos Lords na Inglaterra, cuja missão é frear a Câmara dos Comuns, a verdadeira assembleia popular.

Os americanos, republicanos sem nobreza, fizeram do Senado o local dos "pais da pátria", com funções semelhantes aos Lords ingleses.

Acrescentaram-lhe, no entanto,como função específica, a representação dos interesses dos estados federados. Para eles, esta é a câmara que deve zelar pelo equilíbrio da Federação, independente da expressão demográfica de cada Estado, o que se expressa na composição proporcional da Câmara dos Deputados.

O Brasil segue esta tradição americana.

Por isso o Senado não é apenas o local político dos mais velhos e dos mais conservadores, mas o local onde se representam os interesses majoritários dos estados-membros.

Os mandatos duram o dobro, oito anos, e a eleição é majoritária, ou seja, um número fixo e igual para todos os estados federados.

Por isso é da natureza dos senadores pensarem solidariamente com os seus governadores e menos com a sua base eleitoral.

Por isso, voto para o Senado não pode estar dissociado do voto no governador do Estado.

Para governar, ele precisará de uma presença atuante e alinhada na câmara alta.


Ubiratan Castro de Araújo

Integrante da Academia de Letras da Bahia e diretor-geral da Fundação Pedro Calmon/SEC ubiratancastrodearaujo@gmail.com


Publicado no Jornal A Tarde - em 19 de agosto, 2010.

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Brasil, Africa do Sul e BRICS

Ubiratan Castro de Araújo*
Sua Excelência, Senador Fernando Collor de Melo
Presidente da Comissão de Relações Exteriores do Senado Brasileiro;
Senhores Senadores,

Agradeço a oportunidade de poder contribuir para o debate parlamentar sobre a política externa do Brasil, muito especialmente sobre a consolidação de um bloco de países emergentes, cuja afirmação representa um importante contraponto à centralidade dos chamados países ricos que compõem o grupo dos países mais ricos do mundo, também chamado de G7. Minha modesta contribuição diz respeito à especialidade da relação bilateral entre o Brasil e a África do Sul, liderança reconhecida na articulação da política continental africana. Ela se fundamenta na experiência acumulada durante 4 anos(2003-2oo7) em que tive a honra de presidir a Fundação Cultural Palmares do Ministério da Cultura, que desempenhou um papel auxiliar ao Ministério das Relações Exteriores, em matéria de política africana.
     
I-Introdução.
Minhas primeiras palavras serão para afirmar a importância  do paradigma contemporâneo da complexidade na análise da política internacional. Superada a polaridade estabelecida após a 2ª Guerra Mundial, que impôs o alinhamento automático das nações em dois estados antagônicos, EEUU e União Soviética, a ordem econômica e a governança mundial, passou a vigorar um complexo sistema de blocos concorrentes, não exclusivos, que se constituem em novos lócus de interesses políticos, econômicos, culturais e identitários.

No caso do Brasil, deixamos de fazer parte de um conjunto de países subdesenvolvidos, subordinados a um império informal norte-americano. A afirmação de nossa soberania efetiva-se pela adesão brasileira a vários círculos de articulação regional, em função de interesses particulares. Participamos ativamente da ampliação do chamado G20, para fazer valer os interesses dos países localizados no eixo Sul-Sul; participamos igualmente do MERCOSUL; participamos da articulação dos países da América do Sul; compomos a CPLP, com países de 4 continentes de língua oficial portuguesa; participamos da concertação intitulada IBAS, que nos reúne a duas potencias que representam o eixo Sul-Sul, a Índia, o Brasil e a África do Sul. Mais recentemente criou-se, a partir do Gordon Banks, o conceito do BRIC, Brasil, Rússia, Índia e China, incluída posteriormente a África do Sul, como um fórum de países emergentes, com interesses semelhantes na economia e na governança mundiais.

Este novo bloco regional não reflete nenhuma história especial de cooperação, nenhuma herança cultural comum, tampouco qualquer identidade política dos países que dele participam. A convergência é de interesses conjunturais na negociação da governança mundial. Interessa a todos a regulação do comércio mundial, a circulação de capitais, a representação nos fóruns internacionais de decisão. Evidentemente que a própria dinâmica deste agrupamento desde 2006, com a 1ª reunião de Chanceleres do BRIC, pode constituir no futuro uma aliança mais estável do que uma simples plataforma de reivindicações. Para tanto, é necessário levar em consideração as relações bilaterais entre os países participantes.
Cabe-me destacar as relações entre o Brasil e a África do Sul, no interior deste novo bloco de cooperação internacional, que se orientam, para além de interesses conjunturais, por uma herança cultural comum e pelos imperativos de uma geopolítica do Atlântico Sul.
     
    II-A nova política externa brasileira na era Lula/Celso Amorim.

A nova política africana desenvolvida no governo do Presidente Luís Inácio Lula da Silva a partir do seu primeiro mandato em 2003, orienta-se pela afirmação dos princípios de uma política externa independente em um mundo interdependente, com a inclusão em todas as instancias decisórias dos países do eixo Sul-Sul, ou seja, aqueles que não integram o restrito grupo dos chamados países ricos.

Naturalmente, a política externa para a África buscou a interlocução política com os países africanos, os mais excluídos dos fóruns de decisão internacionais. No entanto, as próprias variáveis da política internacional não explicam os avanços da política africana do Brasil. A política externa para a África foi a exportação da política interna de promoção da igualdade racial instituída desde 2003, largamente negociada com o movimento negro brasileiro.

A conexão Brasil – África é um componente central das convicções reafirmadas pelos militantes negros brasileiros. Proclamar a nossa ancestralidade africana significa rejeitar a escravidão como referência de nossa identidade. Somos portadores de uma herança cultural antiga, originária de grandes civilizações africanas. Como vários outros povos da humanidade fomos vítimas do cativeiro, resistimos, lutamos e vencemos a escravidão.   

Outra característica da opinião pública favorável a uma política de fraternidade em relação à África é o consenso entre os cidadãos negros brasileiros sobre o panafricanismo.  A própria dinâmica da escravidão fez com que os cativos oriundos das mais variadas nações africanas estivessem misturados sob o controle dos mesmos algozes nas terras americanas. Na Bahia, por exemplo, desenvolveu-se uma macro-identidade de “africanos”, uma espécie de grande guarda-chuvas que cobria todos os nascidos no continente africano. Exatamente por isso que o movimento do panafricanismo nasceu nas Américas.  Graças a esta convicção, a atuação brasileira em todos os fóruns interafricanos é marcado pela busca da união em contraposição aos nacionalismos radicais e fratricidas. Isto ficou evidente na II Conferência de Intelectuais da África e da Diáspora, realizada em Salvador, em 2006.

Amparada nesta ampla mobilização interna, a política africana do governo Lula apresentou resultados largamente positivos. Entre 2003 e 20911 foram abertas 20 embaixadas em África. No mesmo período o presidente da República visitou oficialmente 23 países africanos, ao passo que até então, nenhum presidente da República havia feito um visita oficial à África. Outro indicador importante foi o aumento do intercâmbio comercial entre o Brasil e a África de US$ 5 bilhões em 2002 para US$ 20,5 bilhões em 2010.

Outro compromisso de política interna que qualificou a presença diplomática brasileira em África foi a condenação de toda forma de racismo e colonialismo contra a África Negra e a adoção na prática de uma política de reparação do povo negro, continental e diaspórico, pelas seqüelas deixadas pela escravidão. Internamente, o governo brasileiro praticou uma política de ações afirmativas compensatórias. Externamente o próprio presidente proclamou o direito à reparação, pediu perdão em nome do Estado brasileiro (eu estava presente na Ilha de Gorée, no Senegal) e desenvolveu ações de reparação, tais como o perdão de dívidas externas de países africanos, o investimento em projetos de tecnologia agrícola e instalação de fábricas de remédios. Nenhum outro país americano implementou uma política desta qualidade. Não é sem motivo que o Presidente Wade, do Senegal, proclamou o Presidente Lula com o “Primeiro Presidente Negro do Brasil”.

 A importância da África do Sul, parceira do BRICS, cresce pela liderança que exerce na África Negra, sobretudo sobre os países de língua oficial inglesa que compõem a Comonwelth. Isto se confirma pelo protagonismo da África do Sul na transformação da antiga OUA em União Africana e na formulação do NEPAD, grande plano continental de desenvolvimento. Do ponto de vista político, a África do Sul defende a idéia força que mobiliza todo o continente que é o “Renascimento Africano”. Por isso, agrupada no BRIC, a África do Sul é um parceiro privilegiado para a consolidação de uma política africana brasileira.

O Brasil e a África e o futuro do Atlântico Sul.

Além da solidariedade povo a povo que nos une aos africanos, há também interesses nacionais brasileiros que devem ser beneficiadas por essa irmandade. Não há como fugir da Geopolítica.

Durante 3 séculos e meio de escravidão e tráfico de escravos, o Brasil e a África formavam um bloco econômico colonial. A África forneceu ao Brasil o capital humano responsável pelo sucesso da empresa colonial, pelo povoamento da terra e pela cultura que o diferenciou da metrópole portuguesa. Os historiadores mais consagrados da escravidão colonial são unânimes na qualificação deste Atlântico Negro como um sistema econômico. Luís Felipe Alencastro, professor na Sorbonne-Fr., afirma peremptoriamente:  -Sem Angola não haveria Brasil! Após a escravidão, a recolonização européia da África pelas potências européias determinou o corte definitivo das relações de troca entre as duas margens do Atlântico Negro.

Uma das diretrizes da nova política africana do Brasil é o restabelecimento das comunicações com a África, por cima ou através do antigo Atlântico Negro. Para tanto, é necessário um Atlântico Sul em paz.

 Outra circunstância unilateral que recomenda a “Paz Sul-Atlântica” é a nova projeção da exploração econômica brasileira sobre as águas profundas do Atlântico, para além da antiga plataforma continental. O grande fato novo é a descoberta e o início efetivo da extração do petróleo no sub-solo Atlântico, o chamado “Pré Sal”. A tecnologia empregada, o dimensionamento das reservas e a expectativa de recursos financeiros para o Brasil, caracterizam o “Pré-Sal” como o novo “take off” capaz de tirar definitivamente o Brasil do rol dos países subdesenvolvidos.

Basta olhar para um mapa do Atlântico Sul p0ara perceber que 80% da sua margem ocidental é ocupada pelo Brasil e a margem oriental é ocupada por mais de uma dezena de países, uns maiores, outros menores. Não é difícil antever a necessidade de estabilização da margem africana, de modo a prevenir turbulências que possam afetar a exploração petrolífera brasileira. Basta lembrar da instabilidade gerada na navegação do Índico pela anarquia decorrente da destruição do estado nacional na Somália.    

O sucesso do Pré-Sal exigirá certamente, além de um escudo de defesa a ser provido pelas frotas da nossa Marinha de Guerra, um escudo diplomático poderoso formado por relações de solidariedade entre o Brasil e todos os países da Costa D’África. A Diplomacia brasileira ostenta justamente o galardão de ter conseguido, ao longo de pouco mais de um século, estabilizar as fronteiras terrestres do Brasil. No futuro ela será desafiada a estabilizar esta fronteira atlântica, através ações bilaterais com cada país africano, assim como mediante a negociação em instâncias multilaterais como o BRIC. Não podemos negligenciar o papel que a China desempenhará em tais tratativas, pela sua presença comercial predominante em todos os países da Costa d”África.

* Texto apresentado na Audiência Pública da Comissão de Relações Exteriores e Defesa do Senado Federal, Brasília, em 16 de maio de 2011.

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O Império Contra Ataca



Como poderíamos entender a persistência do lema “Saudades de ACM”, inscrito nos automóveis e veiculado nos jornais e no rádio? Além do natural exorcismo, cabe-nos tentar entender as circunstâncias sociológicas desta permanência. A grande questão a ser compreendida é como é possível a sobrevivência de uma cultura política marcada pela extrema centralização e personalização do poder regional em uma sociedade caracterizada pela abertura de costumes, pelo cosmopolitismo, pela diversidade cultural e pela desconcentração econômica?

Com o advento da República, consolidaram-se vários produtos de exportação, como fumo e charutos, café, carbonados, gado, sisal e o cacau, oriundos das mais diversas regiões do estado. Diferentemente do monolitismo imperial, dominado pela todo poderosa aristocracia sacarina do Recôncavo, a política republicana na Bahia caracterizou-se pela instabilidade das alianças e pela grande competição entre lideranças. Foi o que o senador catarinense Lauro Muller caricaturou: -Na política baiana todos são unanimemente divergentes!.

Registramos então a ascensão de governadores fortes, espécie de imperadores temporários, que constituíram os vários “ismos” da Bahia, Severinismo, Seabrismo, Juracisismo e Carlismo, sucedidos por governadores negociadores, como Antonio Moniz na Primeira República; Otávio Mangabeira e Antonio Balbino após 1945; e mais recentemente Valdir Pires e Jaques Wagner. Olhando para a história universal, a experiência política que mais se assemelha à baiana é o Bonapartismo. Em um quadro de extrema divergência e de equilíbrio de poder entre as elites francesas no tempo da Revolução, o General Bonaparte impôs a sua ditadura pessoal em nome dos interesses gerais da burguesia. Isto fizeram Seabra, Juraci e ACM na Bahia.

A própria diversidade baiana fez implodir todos estes bonapartismos, de tal sorte que, na longa duração, de maneira intermitente, governadores negociadores intercalaram governos autoritários. Estes também experimentaram a fragilidade de alianças efêmeras em um sistema de elites historicamente divergentes. Nas eleições de 2010, estes modelos voltam a se enfrentar. De um lado, o governador Wagner, um negociador profissional, enfrenta um remanescente fracassado do bonapartismo, Paulo Souto e um candidato a Bonaparte III, o ministro Gedel Vieira Lima. Correndo por fora, com grandes chances de futuro está o herdeiro de ACM, o jovem Neto, que já começa a proclamar a sualegitimidade, pronto para aproveitar-se do menor erro do atual governador.

Será que é o destino da Bahia oscilar, qual um pêndulo, entre autoritarismo e negociação?

Olhando para a história, percebemos que apesar da fragilidade das alianças engtre elites, consolidaram-se alguns sistemas políticos centralizados e estáveis. O primeiro exemplo a se considerar é o do Império Romano do Oriente, também chamado de Império Bizantino, que sobreviveu mil anos ao seu congênere de Roma, que sucumbiu diante da desagregação interna e da invasão dos bárbaros. Os imperadores de Constantinopla não descuidaram de toda a sorte de barganhas com seus nobres, mas estabeleceram uma aliança estável com as camadas populares, protegendo uma economia urbana e distribuindo terras com famílias camponesas. Isso lhes garantiu impostos e soldados para a manutenção do império. Outro exemplo mais próximo do Brasil é a experiência do pequeno Reino de Portugal, a partir do século XIV, que se constituiu como o primeiro estado nacional unificado da Europa, negociando com os fidalgos, mas estabelecendo uma relação direta com os “miúdos”: pescadores, marinheiros, comerciantes, artesãos, organizados nos conselhos municipais. Isto possibilitou aos reis portugueses empreenderem o grande projeto nacional dos Descobrimentos,podendo contar com soldados, com marinheiros e com impostos municipais.

A História não dita lições mas dá exemplos para a reflexão. Se o governador Wagner não quiser ser mais um negociador a ser substituído por um Bonaparte, que se inspire em Justiniano e em D. João III e estabeleça uma aliança efetiva com todos os “miúdos” da Bahia.


Ubiratan Castro de Araújo

Integrante da Academia de Letras da Bahia e diretor-geral da Fundação Pedro Calmon/SEC

Artigo publicado no dia 29 de abril de 2010, na página A2, do Jornal A TARDE

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PERPLEXIDADE (Comentário)
A opinião internacional está perplexa diante da brutalidade do massacre de alunos da escola municipal de Realengo no Rio de Janeiro. O assassino está morto, portanto não há o espetáculo da investigação policia para provar a autoria e demonstrar a culpabilidade. O assassino está morto, abatido em flagrante delito. A patologia do assassino é pública e notória, explicitada pela correspondência e pelas mensagens desencontradas deixadas por ele próprio . Os gestos de solidariedade à família, de repulsa e de denúncia caem em um grande vazio porquanto o responsável já morreu, suicidou-se. Contra quem protestar? Contra o Estado, pela falta de segurança nas escolas? Contra isso pode-se argumentar que este tipo de ataque é absolutamente novo em toda a história da criminalidade no Brasil. Contra a venda ilegal de armas? Este é outro filão de protestos. Tudo o que se apresentou foi a prisão de dois camelôs que venderam uma arma pertencente a um traficante oculto. Com a maior cara de inocente um dos presos declarou que, se ele soubesse qual a utilização que seria dada ao revólver, não teria vendido a arma ao assassino.Assim desautoriza qualquer relação entre o delito que praticou de venda ilegal de armas e o hediondo massacre do Realengo.
E agora José? Quem será o bode expiatório deste crime que abalou a opinião pública? O mais óbvio é a loucura do próprio assassino. Autismo?, misoginia?, traumas do bowling? adesão ao Islã?, admiração por Bin  Laden? Estes são temas que podem alimentar o noticiário mas não respondem ao porquê desta violência pensada e executada de maneira fria e inexorável. Resta a perplexidade. O que me chama a atenção é a possibilidade de contato instantâneo à distância entre indivíduos, em um espaço livre de qualquer controle institucional, seja de estados nacionais, de movimentos políticos ou religiosos, independente de qualquer constrangimento de ordem moral. Os loucos podem estimularem-se entre si, circular experiências, treinarem-se e solidarizarem-se! O que sobra a nós outros? A perplexidade, a impotência, o esperneio a êsmo. Resta-nos talvez a iniciativa individual desesperada de combater nesse espaço livre de comunicação, esta conexão mundial da morte, falando da vida e do respeito devido a cada pessoa. É muito pouco, só pra não dizer que nós compactuamos com esta monstruosidade!   Bira   

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A CONEXÃO AFRICANA



Ubiratan Castro de Araújo*

As navegações portuguesas, linha de frente da expansão européia a partir do século XV, operaram uma nova geografia mundial representada pela constituição de novos espaços econômicos articulados pelo capitalismo europeu. Dentre estes blocos, destacou-se o espaço Atlântico, em que a conexão necessária entre o norte europeu (dominante), o leste africano e o oeste americano (colonizados) reuniu fatores econômicos tripolares para a produção de mercadorias e acumulação primitiva de capitais no pólo europeu. Assim bem demonstra a obra clássica de Eric Williams, Capitalismo e Escravidão.
O império português foi uma das conexões específicas, a rigor a primeira, neste espaço atlântico. A navegação transatlântica extraiu violentamente uma massa de trabalhadores africanos, não menos de 30 milhões de pessoas, para a produção de comodities no Brasil, exportadas por sua vez para a metrópole portuguesa que a distribuía nos mercados europeus e retinha os lucros correspondentes. O pacto colonial que vigorou até o início do século XIX, com a independência do Brasil no 2 de Julho de 1823, incluía a costa leste africana. Luís Felipe Alencastro constata acertadamente que sem Angola não existiria Brasil. Assim, o nascente império do Brasil, resultado da desintegração do império atlântico português, insistiu na necessária conexão africana. Entre 1823 e 1850, comerciantes do Rio de Janeiro e da Bahia, persistiram no tráfico de escravos extraídos de duas zonas bem definidas, a Angola dos cariocas e o Golfo da Guiné dos baianos.
Também do ponto de vista político, foram os reinos do Golfo da Guiné, Onim/Lagos e Dahomé, e a Câmara Municipal de Benguela/Angola, os primeiros no mundo a reconhecerem o império brasileiro e os únicos a reivindicarem sua integração ao novo império transatlântico brasileiro. Tal não ocorreu pela intervenção militar britânica que reprimiu o tráfico africano até a sua interrupção total em 1850, para a implantação de uma outra divisão internacional do trabalho centrada na Inglaterra. Era o que François Crouzet chamava de “império informal britânico”.
Assim, nestes 350 de economia atlântica, a história do Brasil era também a história da África e vice-versa. Sem as guerras de Angola não se entende a guerra de Palmares em Pernambuco, sem a jihad islâmica na Grande Guiné não se entende a revolta dos Malês na Bahia.
O objeto desta comunicação é como sobrevive uma conexão social e cultural África-Brasil, cultivada pelas populações remanescentes africanas e as emergentes afro-brasileiras, após a ruptura das trocas econômicas entre os dois lados do Atlântico. Como estas populações afro-brasileiras construíram de memória uma herança africana, o núcleo duro de sua identidade e a principal referência de suas lutas para a afirmação de sua cidadania brasileira, nos termos da diversidade cultural contemporânea [1].
Para enriquecer esta discussão, apresento dois problemas para reflexão:

1.                                   O grande Movimento Abolicionista (1865-1889), o maior e mais amplo movimento político e social do século XIX,  transclassista e plurietnico, apesar de vitorioso, não conseguiu produzir uma integração das maiorias negras na sociedade brasileira. Avalia-se que a pauta do movimento abolicionista restringia-se à extinção da propriedade escrava e apontava para a integração dos libertos como assalariados, sem qualquer menção identitária ou reparatória dos ex-escravos negros. O que se viu após o 13 de Maio foi a discriminação dos libertos como cidadãos de segunda classe.
2.                                   Somente com o advento do governo do Presidente Lula, 115 anos mais tarde, sob o impulso e hegemonia do Movimento Negro Brasileiro, que afirma a herança cultural africana e que proclama como referência a derrotada resistência do Quilombo dos Palmares em 1695, e também no processo de reencontro diplomático do governo brasileiro com os países africanos contemporâneos, foram possíveis os grandes avanços da integração econômica, social e cultural dos cidadãos negros brasileiros.    



[1] Uma avaliação das sobrevivências identitárias dos movimentos sociais e políticos negros nos séculos XIX e XX estão no artigo em anexo: Araújo, Ubiratan Castro de. La conexion atlantique. Histoire, mémoirie et identité.

* Conferência apresentada durante solenidade de lançamento da Coleção Unesco História Geral da África, versão em português, na Reitoria da Universidade Federal da Bahia, em 04 de abril de 2011.

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O ESPÍRITO QUE DANÇA

O ESPÍRITO QUE DANÇA

O carnaval é um momento revelador de emoções de toda ordem, inclusive as estéticas. Paulinho da Viola narra um lampejo de paixão. Portela, quando vi você passar, senti meu coração apertado, todo o meu corpo tomado, minha alegria voltar. Senti emoção semelhante quando vi, neste domingo de carnaval, o Cortejo Afro passar. Em meio a um mar de corpos frenéticos em movimentos descoordenados emergiu um espetáculo da mais fina qualidade, interpretado por dançarinos profissionais, poucos, porém excelentes.

Para todos nós que cultivamos nossa herança africana a dança é a arte maior. Ela não mexe apenas com nossos sentidos. Ela reboliça todo o nosso corpo. As heranças de matriz semita, dominantes no Ocidente branco, votam um profundo desapreço ao corpo humano. Para os cristãos medievais o corpo representava a carne, fonte de tentações e pecados. As imagens eram excessivamente alongadas, descarnadas, desengraçadas. Entre os cristãos ortodoxos gregos, vários foram os momentos de crise em que os iconoclastas destruíram imagens por criticarem a representação do corpo humano. Os muçulmanos, mais radicais, proíbem qualquer reprodução do corpo humano, laica ou religiosa. As únicas formas de decoração de suas mesquitas é a própria palavra de Alá, gravada em seu belíssimo alfabeto, os famosos arabescos.

Na Bahia afro-descendente, cultivamos a herança africana, em que o corpo humano é o templo dos orixás, dos vodus e dos inquices. É no corpo que se inscrevem identidades e compromissos religiosos. É o corpo nu ou semi -nu que reflete e absorve a luz do sol, o acariciar do vento, o frescor da água, a força da terra. Os espíritos que já não tem corpo, necessitam incorporar-se no corpo dos vivos para marcarem suas presenças, suas mensagens. A dança dos orixás é uma forma sublime de comunicação com a divindade. O corpo que dança é um corpo sagrado.

Esta dança do Candomblé, ao sair dos terreiros, funde-se com as melhores tradições da dança ocidental, a dança moderna e o jazz. Este invento baiano, a dança afro, teve como principal artífice o brother americano Clyde Morgan. Contratado como professor da Escola de Dança da Universidade Federal da Bahia, este filho de Ogum tem formado nesses mais de 40 anos os dançarinos negros da Bahia. Esta dança está em todos os blocos, afoxés, academias de dança afro e de swing baiano. O grande presente que nos deu o Cortejo Afro neste carnaval foi o Mestre Clyde e seus discípulos, em um espetáculo primoroso ao alcance de todos.  

O Cortejo Afro é o espetáculo do sucesso de uma família negra de Pirajá, os Pita, que zela por um Terreiro de Candomblé, e há mais de 10 anos mantém um trabalho precioso de formação artística de jovens negros, libertando-os da órbita de influência dos marginais. Ainda ecoa em minha memória a justa revolta de uma integrante da família ao narrar o brutal assassinato de um jovem, ex-aluno dos Pitas, que abandonou a turminha criminosa da droga, tornou-se um dançarino profissional na Europa, e de férias em Pirajá, foi covardemente assassinado porque era um mau exemplo para os bandidos.  Os Pita resistem obstinadamente em sua ação cidadã. O resultado evidente é a beleza do Cortejo Afro no Carnaval.

Também no carnaval, o Cortejo Afro e Clyde Morgan cumprem sua missão de opor resistência a uma barbárie que se expande. A dança sagrada do candomblé é o contraponto à grosseria cantada pelos artistas top da Mídia: Toma negona, toma na chupeta, toma negona, na boca e na buchecha. Esta é a própria expressão da violência sexual seguida do refrão oligofrênico Gugu Dadá, Gugu Dadá... A Dança de Clyde é sagrada e ele, mais do que um sacerdote, é o próprio Espírito-que-Dança.
Ubiratan Castro de Araújo
Da Academia de Letras da Bahia.

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INVENTAR DE NOVO O CARNAVAL



Dançarina do bloco afro Amigos do Babá. Foto: André Santana

Em um samba paradigmático da bossa-nova, Rua Nascimento Silva, 107..., Vinicius se despede de Tom Jobim afirmando ser preciso inventar de novo o amor. Mudar não significa necessariamente destruir o velho. Algumas sociedades experimentam a permanente reinvenção de suas tradições, assim nos ensina o historiador Eric Hobsbawn. Este é o caso do carnaval baiano que incorpora freneticamente todas as novidades tecnológicas, artísticas e culturais e, ao mesmo tempo, faz o up grade dos velhos carnavais.

Quinta-feira de carnaval. Saí no bloco organizado pelos funcionários da Biblioteca Pública, em homenagem aos 200 anos de fundação daquela instituição. Ainda não havia carnaval na rua mas estávamos lá, cerca de 70 colegas bibliotecários, animados por uma enérgica bandinha de 20 músicos e por uma dúzia de pierrôs mascarados vindos de Plataforma. A nossa brincadeira contagiou fregueses e comerciários da Av.7. Senti-me aos 19 anos, com os meus colegas da APLB, no querido Filhos de Filó e Sofia, cantando os sambas de Babita e de Normando Batista.

Sexta-feira de carnaval. Tive a honra de desfilar no bloco afro Amigos do Babá. Um apuro muito grande dos organizadores, belas e inventivas fantasias inspiradas em motivos africanos, duas alas de dançarinos disciplinados por uma coreografia rigorosa e com uma altivez de balizos de fanfarra. A bateria estava impecável e a cantora lembrava Sandra Sá, cantando um regue à la Muzenza. Brincamos muito pela Misericórdia e pela Rua Chile, sem cordas e sem pipocas, pois todos os transeuntes que queriam entravam e saiam do bloco e confraternizavam com os desfilantes. Senti-me de volta aos meus 12 anos no Cavaleiros de Bagdá, com o gongo e com Nelson Maleiro.

Dançarinos do bloco afro Amigos do Babá. Foto: André Santana

 
Nós, sexagenários, que não podemos mais pular o carnaval, podemos ainda brincar o carnaval. Por absoluta falta de mobilidade em uma cidade atravancada, deixei de participar de duas iniciativas que teriam me deixado muito feliz. Perdi a invenção de Valtinho Queirós e da Banda do Habeas Copus, o baile à fantasia na Barra. Perdi também a brincadeira inventada por Gereba, Paulinho Boca e pelo Paroano sai Milhor no Rio Vermelho. Paroano, estes serão dois compromissos imperdíveis. Moraes Moreira já botou a boca no mundo para reeditar em 2012 o carnaval na Praça Castro Alves.  Nem tudo é trio e corda no carnaval da Bahia.  

Não estamos sós. Fora da Bahia, assistimos pela TV o sucesso do Galo da Madrugada em Recife e a multidão de brincantes cariocas atrás do Bola Preta, da Banda de Ipanema e do bloco de Santa Tereza. A leitura da Tarde de Domingo revela as várias iniciativas inovadoras no carnaval, com fantasias e mascarados. Mesmo sem jegues, a Mudança do Garcia resiste. Este é um bom sinal. Os brasileiros amantes do carnaval não se submeteram ao voyerismo das escolas de Samba do Rio e das celebridades do trio elétrico baiano.

O pecado é próprio do carnaval, e eu pecarei por imodéstia. Muito me orgulho da minha geração de sexagenários que se identificam com a pretérita rebelião de 1968. Estamos presentes nestes mais de 40 anos em todas as reinvenções políticas, culturais e sociais do Brasil. Desde 1968, quando Caetano mandou, pulamos todos atrás do Trio Elétrico; enchemos a Praça Castro Alves em atenção a Osmar; botamos na rua os blocos de protesto como o Pré-Datado dos bancários, os Filhos da Pauta dos jornalistas e aquele vetusto ato litúrgico que foi E o Povo Pediu. A juventude negra de então levantou a rebelião negra nas ruas, durante o carnaval, e todos nós participamos militantemente da saída do Ilê, no Curuzu. Hoje estamos indiscutivelmente no poder. A Presidenta Dilma e o Governador Wagner são dois legítimos representantes de nossa geração. Estamos todos reinventando um Brasil mais próspero e mais justo. Mas isto não basta. É preciso reinventar um Brasil mais alegre e mais feliz. Para isso é preciso reinventar sempre o Carnaval da Bahia.

Parece que foi combinado. Neste domingo de carnaval, às 13:00h., no Farol da Barra, com praia cheia e avenida vazia, eis que irrompe barulhenta uma muvuca de umas vinte pessoas, reluzentes instrumentos dourados, tocando Balancê e Corre-corre Lambretinha, para o rebolation dos banhistas!      

Ubiratan Castro de Araújo
Da Academia de Letras da Bahia.

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Homenagem do bloco afro Amigos do Babá



Desfile do bloco afro Amigos do Babá, do bairro do Pau Miúdo, no circuito Batatinha, sexta-feira de Carnaval, dia 04 de março de 2011.