O ESPÍRITO QUE DANÇA

O ESPÍRITO QUE DANÇA

O carnaval é um momento revelador de emoções de toda ordem, inclusive as estéticas. Paulinho da Viola narra um lampejo de paixão. Portela, quando vi você passar, senti meu coração apertado, todo o meu corpo tomado, minha alegria voltar. Senti emoção semelhante quando vi, neste domingo de carnaval, o Cortejo Afro passar. Em meio a um mar de corpos frenéticos em movimentos descoordenados emergiu um espetáculo da mais fina qualidade, interpretado por dançarinos profissionais, poucos, porém excelentes.

Para todos nós que cultivamos nossa herança africana a dança é a arte maior. Ela não mexe apenas com nossos sentidos. Ela reboliça todo o nosso corpo. As heranças de matriz semita, dominantes no Ocidente branco, votam um profundo desapreço ao corpo humano. Para os cristãos medievais o corpo representava a carne, fonte de tentações e pecados. As imagens eram excessivamente alongadas, descarnadas, desengraçadas. Entre os cristãos ortodoxos gregos, vários foram os momentos de crise em que os iconoclastas destruíram imagens por criticarem a representação do corpo humano. Os muçulmanos, mais radicais, proíbem qualquer reprodução do corpo humano, laica ou religiosa. As únicas formas de decoração de suas mesquitas é a própria palavra de Alá, gravada em seu belíssimo alfabeto, os famosos arabescos.

Na Bahia afro-descendente, cultivamos a herança africana, em que o corpo humano é o templo dos orixás, dos vodus e dos inquices. É no corpo que se inscrevem identidades e compromissos religiosos. É o corpo nu ou semi -nu que reflete e absorve a luz do sol, o acariciar do vento, o frescor da água, a força da terra. Os espíritos que já não tem corpo, necessitam incorporar-se no corpo dos vivos para marcarem suas presenças, suas mensagens. A dança dos orixás é uma forma sublime de comunicação com a divindade. O corpo que dança é um corpo sagrado.

Esta dança do Candomblé, ao sair dos terreiros, funde-se com as melhores tradições da dança ocidental, a dança moderna e o jazz. Este invento baiano, a dança afro, teve como principal artífice o brother americano Clyde Morgan. Contratado como professor da Escola de Dança da Universidade Federal da Bahia, este filho de Ogum tem formado nesses mais de 40 anos os dançarinos negros da Bahia. Esta dança está em todos os blocos, afoxés, academias de dança afro e de swing baiano. O grande presente que nos deu o Cortejo Afro neste carnaval foi o Mestre Clyde e seus discípulos, em um espetáculo primoroso ao alcance de todos.  

O Cortejo Afro é o espetáculo do sucesso de uma família negra de Pirajá, os Pita, que zela por um Terreiro de Candomblé, e há mais de 10 anos mantém um trabalho precioso de formação artística de jovens negros, libertando-os da órbita de influência dos marginais. Ainda ecoa em minha memória a justa revolta de uma integrante da família ao narrar o brutal assassinato de um jovem, ex-aluno dos Pitas, que abandonou a turminha criminosa da droga, tornou-se um dançarino profissional na Europa, e de férias em Pirajá, foi covardemente assassinado porque era um mau exemplo para os bandidos.  Os Pita resistem obstinadamente em sua ação cidadã. O resultado evidente é a beleza do Cortejo Afro no Carnaval.

Também no carnaval, o Cortejo Afro e Clyde Morgan cumprem sua missão de opor resistência a uma barbárie que se expande. A dança sagrada do candomblé é o contraponto à grosseria cantada pelos artistas top da Mídia: Toma negona, toma na chupeta, toma negona, na boca e na buchecha. Esta é a própria expressão da violência sexual seguida do refrão oligofrênico Gugu Dadá, Gugu Dadá... A Dança de Clyde é sagrada e ele, mais do que um sacerdote, é o próprio Espírito-que-Dança.
Ubiratan Castro de Araújo
Da Academia de Letras da Bahia.

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1 opiniões:

Ademario Ribeiro disse...

Professor Bira, mais uma vez leio e me alegro com suas palavaras e admiro suas posições. Vida longa ao brilhante Clyde Morgan e ao admirável Cortejo Afro! Teu relato me faz lembrar de outros mestres da dança na Bahia: King, Reginaldo Daniel Flores (Conga), Graça Salles, entre tantos outros!

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