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O Império Contra Ataca



Como poderíamos entender a persistência do lema “Saudades de ACM”, inscrito nos automóveis e veiculado nos jornais e no rádio? Além do natural exorcismo, cabe-nos tentar entender as circunstâncias sociológicas desta permanência. A grande questão a ser compreendida é como é possível a sobrevivência de uma cultura política marcada pela extrema centralização e personalização do poder regional em uma sociedade caracterizada pela abertura de costumes, pelo cosmopolitismo, pela diversidade cultural e pela desconcentração econômica?

Com o advento da República, consolidaram-se vários produtos de exportação, como fumo e charutos, café, carbonados, gado, sisal e o cacau, oriundos das mais diversas regiões do estado. Diferentemente do monolitismo imperial, dominado pela todo poderosa aristocracia sacarina do Recôncavo, a política republicana na Bahia caracterizou-se pela instabilidade das alianças e pela grande competição entre lideranças. Foi o que o senador catarinense Lauro Muller caricaturou: -Na política baiana todos são unanimemente divergentes!.

Registramos então a ascensão de governadores fortes, espécie de imperadores temporários, que constituíram os vários “ismos” da Bahia, Severinismo, Seabrismo, Juracisismo e Carlismo, sucedidos por governadores negociadores, como Antonio Moniz na Primeira República; Otávio Mangabeira e Antonio Balbino após 1945; e mais recentemente Valdir Pires e Jaques Wagner. Olhando para a história universal, a experiência política que mais se assemelha à baiana é o Bonapartismo. Em um quadro de extrema divergência e de equilíbrio de poder entre as elites francesas no tempo da Revolução, o General Bonaparte impôs a sua ditadura pessoal em nome dos interesses gerais da burguesia. Isto fizeram Seabra, Juraci e ACM na Bahia.

A própria diversidade baiana fez implodir todos estes bonapartismos, de tal sorte que, na longa duração, de maneira intermitente, governadores negociadores intercalaram governos autoritários. Estes também experimentaram a fragilidade de alianças efêmeras em um sistema de elites historicamente divergentes. Nas eleições de 2010, estes modelos voltam a se enfrentar. De um lado, o governador Wagner, um negociador profissional, enfrenta um remanescente fracassado do bonapartismo, Paulo Souto e um candidato a Bonaparte III, o ministro Gedel Vieira Lima. Correndo por fora, com grandes chances de futuro está o herdeiro de ACM, o jovem Neto, que já começa a proclamar a sualegitimidade, pronto para aproveitar-se do menor erro do atual governador.

Será que é o destino da Bahia oscilar, qual um pêndulo, entre autoritarismo e negociação?

Olhando para a história, percebemos que apesar da fragilidade das alianças engtre elites, consolidaram-se alguns sistemas políticos centralizados e estáveis. O primeiro exemplo a se considerar é o do Império Romano do Oriente, também chamado de Império Bizantino, que sobreviveu mil anos ao seu congênere de Roma, que sucumbiu diante da desagregação interna e da invasão dos bárbaros. Os imperadores de Constantinopla não descuidaram de toda a sorte de barganhas com seus nobres, mas estabeleceram uma aliança estável com as camadas populares, protegendo uma economia urbana e distribuindo terras com famílias camponesas. Isso lhes garantiu impostos e soldados para a manutenção do império. Outro exemplo mais próximo do Brasil é a experiência do pequeno Reino de Portugal, a partir do século XIV, que se constituiu como o primeiro estado nacional unificado da Europa, negociando com os fidalgos, mas estabelecendo uma relação direta com os “miúdos”: pescadores, marinheiros, comerciantes, artesãos, organizados nos conselhos municipais. Isto possibilitou aos reis portugueses empreenderem o grande projeto nacional dos Descobrimentos,podendo contar com soldados, com marinheiros e com impostos municipais.

A História não dita lições mas dá exemplos para a reflexão. Se o governador Wagner não quiser ser mais um negociador a ser substituído por um Bonaparte, que se inspire em Justiniano e em D. João III e estabeleça uma aliança efetiva com todos os “miúdos” da Bahia.


Ubiratan Castro de Araújo

Integrante da Academia de Letras da Bahia e diretor-geral da Fundação Pedro Calmon/SEC

Artigo publicado no dia 29 de abril de 2010, na página A2, do Jornal A TARDE

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PERPLEXIDADE (Comentário)
A opinião internacional está perplexa diante da brutalidade do massacre de alunos da escola municipal de Realengo no Rio de Janeiro. O assassino está morto, portanto não há o espetáculo da investigação policia para provar a autoria e demonstrar a culpabilidade. O assassino está morto, abatido em flagrante delito. A patologia do assassino é pública e notória, explicitada pela correspondência e pelas mensagens desencontradas deixadas por ele próprio . Os gestos de solidariedade à família, de repulsa e de denúncia caem em um grande vazio porquanto o responsável já morreu, suicidou-se. Contra quem protestar? Contra o Estado, pela falta de segurança nas escolas? Contra isso pode-se argumentar que este tipo de ataque é absolutamente novo em toda a história da criminalidade no Brasil. Contra a venda ilegal de armas? Este é outro filão de protestos. Tudo o que se apresentou foi a prisão de dois camelôs que venderam uma arma pertencente a um traficante oculto. Com a maior cara de inocente um dos presos declarou que, se ele soubesse qual a utilização que seria dada ao revólver, não teria vendido a arma ao assassino.Assim desautoriza qualquer relação entre o delito que praticou de venda ilegal de armas e o hediondo massacre do Realengo.
E agora José? Quem será o bode expiatório deste crime que abalou a opinião pública? O mais óbvio é a loucura do próprio assassino. Autismo?, misoginia?, traumas do bowling? adesão ao Islã?, admiração por Bin  Laden? Estes são temas que podem alimentar o noticiário mas não respondem ao porquê desta violência pensada e executada de maneira fria e inexorável. Resta a perplexidade. O que me chama a atenção é a possibilidade de contato instantâneo à distância entre indivíduos, em um espaço livre de qualquer controle institucional, seja de estados nacionais, de movimentos políticos ou religiosos, independente de qualquer constrangimento de ordem moral. Os loucos podem estimularem-se entre si, circular experiências, treinarem-se e solidarizarem-se! O que sobra a nós outros? A perplexidade, a impotência, o esperneio a êsmo. Resta-nos talvez a iniciativa individual desesperada de combater nesse espaço livre de comunicação, esta conexão mundial da morte, falando da vida e do respeito devido a cada pessoa. É muito pouco, só pra não dizer que nós compactuamos com esta monstruosidade!   Bira   

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A CONEXÃO AFRICANA



Ubiratan Castro de Araújo*

As navegações portuguesas, linha de frente da expansão européia a partir do século XV, operaram uma nova geografia mundial representada pela constituição de novos espaços econômicos articulados pelo capitalismo europeu. Dentre estes blocos, destacou-se o espaço Atlântico, em que a conexão necessária entre o norte europeu (dominante), o leste africano e o oeste americano (colonizados) reuniu fatores econômicos tripolares para a produção de mercadorias e acumulação primitiva de capitais no pólo europeu. Assim bem demonstra a obra clássica de Eric Williams, Capitalismo e Escravidão.
O império português foi uma das conexões específicas, a rigor a primeira, neste espaço atlântico. A navegação transatlântica extraiu violentamente uma massa de trabalhadores africanos, não menos de 30 milhões de pessoas, para a produção de comodities no Brasil, exportadas por sua vez para a metrópole portuguesa que a distribuía nos mercados europeus e retinha os lucros correspondentes. O pacto colonial que vigorou até o início do século XIX, com a independência do Brasil no 2 de Julho de 1823, incluía a costa leste africana. Luís Felipe Alencastro constata acertadamente que sem Angola não existiria Brasil. Assim, o nascente império do Brasil, resultado da desintegração do império atlântico português, insistiu na necessária conexão africana. Entre 1823 e 1850, comerciantes do Rio de Janeiro e da Bahia, persistiram no tráfico de escravos extraídos de duas zonas bem definidas, a Angola dos cariocas e o Golfo da Guiné dos baianos.
Também do ponto de vista político, foram os reinos do Golfo da Guiné, Onim/Lagos e Dahomé, e a Câmara Municipal de Benguela/Angola, os primeiros no mundo a reconhecerem o império brasileiro e os únicos a reivindicarem sua integração ao novo império transatlântico brasileiro. Tal não ocorreu pela intervenção militar britânica que reprimiu o tráfico africano até a sua interrupção total em 1850, para a implantação de uma outra divisão internacional do trabalho centrada na Inglaterra. Era o que François Crouzet chamava de “império informal britânico”.
Assim, nestes 350 de economia atlântica, a história do Brasil era também a história da África e vice-versa. Sem as guerras de Angola não se entende a guerra de Palmares em Pernambuco, sem a jihad islâmica na Grande Guiné não se entende a revolta dos Malês na Bahia.
O objeto desta comunicação é como sobrevive uma conexão social e cultural África-Brasil, cultivada pelas populações remanescentes africanas e as emergentes afro-brasileiras, após a ruptura das trocas econômicas entre os dois lados do Atlântico. Como estas populações afro-brasileiras construíram de memória uma herança africana, o núcleo duro de sua identidade e a principal referência de suas lutas para a afirmação de sua cidadania brasileira, nos termos da diversidade cultural contemporânea [1].
Para enriquecer esta discussão, apresento dois problemas para reflexão:

1.                                   O grande Movimento Abolicionista (1865-1889), o maior e mais amplo movimento político e social do século XIX,  transclassista e plurietnico, apesar de vitorioso, não conseguiu produzir uma integração das maiorias negras na sociedade brasileira. Avalia-se que a pauta do movimento abolicionista restringia-se à extinção da propriedade escrava e apontava para a integração dos libertos como assalariados, sem qualquer menção identitária ou reparatória dos ex-escravos negros. O que se viu após o 13 de Maio foi a discriminação dos libertos como cidadãos de segunda classe.
2.                                   Somente com o advento do governo do Presidente Lula, 115 anos mais tarde, sob o impulso e hegemonia do Movimento Negro Brasileiro, que afirma a herança cultural africana e que proclama como referência a derrotada resistência do Quilombo dos Palmares em 1695, e também no processo de reencontro diplomático do governo brasileiro com os países africanos contemporâneos, foram possíveis os grandes avanços da integração econômica, social e cultural dos cidadãos negros brasileiros.    



[1] Uma avaliação das sobrevivências identitárias dos movimentos sociais e políticos negros nos séculos XIX e XX estão no artigo em anexo: Araújo, Ubiratan Castro de. La conexion atlantique. Histoire, mémoirie et identité.

* Conferência apresentada durante solenidade de lançamento da Coleção Unesco História Geral da África, versão em português, na Reitoria da Universidade Federal da Bahia, em 04 de abril de 2011.