A CONEXÃO AFRICANA



Ubiratan Castro de Araújo*

As navegações portuguesas, linha de frente da expansão européia a partir do século XV, operaram uma nova geografia mundial representada pela constituição de novos espaços econômicos articulados pelo capitalismo europeu. Dentre estes blocos, destacou-se o espaço Atlântico, em que a conexão necessária entre o norte europeu (dominante), o leste africano e o oeste americano (colonizados) reuniu fatores econômicos tripolares para a produção de mercadorias e acumulação primitiva de capitais no pólo europeu. Assim bem demonstra a obra clássica de Eric Williams, Capitalismo e Escravidão.
O império português foi uma das conexões específicas, a rigor a primeira, neste espaço atlântico. A navegação transatlântica extraiu violentamente uma massa de trabalhadores africanos, não menos de 30 milhões de pessoas, para a produção de comodities no Brasil, exportadas por sua vez para a metrópole portuguesa que a distribuía nos mercados europeus e retinha os lucros correspondentes. O pacto colonial que vigorou até o início do século XIX, com a independência do Brasil no 2 de Julho de 1823, incluía a costa leste africana. Luís Felipe Alencastro constata acertadamente que sem Angola não existiria Brasil. Assim, o nascente império do Brasil, resultado da desintegração do império atlântico português, insistiu na necessária conexão africana. Entre 1823 e 1850, comerciantes do Rio de Janeiro e da Bahia, persistiram no tráfico de escravos extraídos de duas zonas bem definidas, a Angola dos cariocas e o Golfo da Guiné dos baianos.
Também do ponto de vista político, foram os reinos do Golfo da Guiné, Onim/Lagos e Dahomé, e a Câmara Municipal de Benguela/Angola, os primeiros no mundo a reconhecerem o império brasileiro e os únicos a reivindicarem sua integração ao novo império transatlântico brasileiro. Tal não ocorreu pela intervenção militar britânica que reprimiu o tráfico africano até a sua interrupção total em 1850, para a implantação de uma outra divisão internacional do trabalho centrada na Inglaterra. Era o que François Crouzet chamava de “império informal britânico”.
Assim, nestes 350 de economia atlântica, a história do Brasil era também a história da África e vice-versa. Sem as guerras de Angola não se entende a guerra de Palmares em Pernambuco, sem a jihad islâmica na Grande Guiné não se entende a revolta dos Malês na Bahia.
O objeto desta comunicação é como sobrevive uma conexão social e cultural África-Brasil, cultivada pelas populações remanescentes africanas e as emergentes afro-brasileiras, após a ruptura das trocas econômicas entre os dois lados do Atlântico. Como estas populações afro-brasileiras construíram de memória uma herança africana, o núcleo duro de sua identidade e a principal referência de suas lutas para a afirmação de sua cidadania brasileira, nos termos da diversidade cultural contemporânea [1].
Para enriquecer esta discussão, apresento dois problemas para reflexão:

1.                                   O grande Movimento Abolicionista (1865-1889), o maior e mais amplo movimento político e social do século XIX,  transclassista e plurietnico, apesar de vitorioso, não conseguiu produzir uma integração das maiorias negras na sociedade brasileira. Avalia-se que a pauta do movimento abolicionista restringia-se à extinção da propriedade escrava e apontava para a integração dos libertos como assalariados, sem qualquer menção identitária ou reparatória dos ex-escravos negros. O que se viu após o 13 de Maio foi a discriminação dos libertos como cidadãos de segunda classe.
2.                                   Somente com o advento do governo do Presidente Lula, 115 anos mais tarde, sob o impulso e hegemonia do Movimento Negro Brasileiro, que afirma a herança cultural africana e que proclama como referência a derrotada resistência do Quilombo dos Palmares em 1695, e também no processo de reencontro diplomático do governo brasileiro com os países africanos contemporâneos, foram possíveis os grandes avanços da integração econômica, social e cultural dos cidadãos negros brasileiros.    



[1] Uma avaliação das sobrevivências identitárias dos movimentos sociais e políticos negros nos séculos XIX e XX estão no artigo em anexo: Araújo, Ubiratan Castro de. La conexion atlantique. Histoire, mémoirie et identité.

* Conferência apresentada durante solenidade de lançamento da Coleção Unesco História Geral da África, versão em português, na Reitoria da Universidade Federal da Bahia, em 04 de abril de 2011.

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