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Quase feliz



Dia 1º de novembro, de madrugada, a TV anunciou a vitória de Dilma Rousseff. Mergulhei em um estado feliz dos meus 12 anos. Como eu era orgulhoso de ser brasileiro. Ainda me lembro do 29 de junho de 1958, Dia de São Pedro. Estava no Pero Vaz, com minha mãe, em visita a uns primos. Na casa vizinha, um rádio berrava o narrador da Rádio Tupi, em ondas curtas. Ouvia-se muito a algazarra dos ouvintes, entremeada pelos gritos longos e gargarejados de gol: gol do Brasil! Os foguetes de flecha rasgavam o ar. Os balões subiram. A maioria verde-amarela, e alguns coloridos carregando uma bandeira brasileira que tremulava pendurada na cestinha. Chegando em casa, encontrei meu pai colado no rádio. Nunca vi o velho tão feliz. Militar reformado, kardecista praticante, não fumava nem bebia, mas parecia estar cheio de Ron Merino, bêbado de alegria. Exclamava: não ganhamos no Maracanã (1950), mas fomos ganhar na Suécia.

Para os meninos como eu, era um orgulho encostar em um FNM, aquele mastodonte que povoava a Rio-Bahia, com a reverência de quem tocava em uma locomotiva da Leste. Era um caminhão brasileiro. Festejávamos os estridentes DKW-Vemag, as Vemaguetes, as Rural-Willis e os espetaculares Fuscas. Era a indústria nacional. Juca Chaves debochava do Presidente JK, o Presidente Bossa Nova! Jovial, bom vivant, namorador, viciado em avião, construía a mais moderna e bonita capital do mundo. Talvez por isso, associava o presidente e sua política à bossa-nova de João Gilberto e de Elizete Cardoso. Esses eram anos dourados.

Na política, JK era um democrata. Levava com pouco fogo a golpista UDN, o virulento Carlos Lacerda, e os amotinados da Aeronáutica. Seu trunfo era o Ministro da Guerra, o general Henrique Teixeira Lott. No meu entendimento de criança, não entendi a derrota da chapa Lott/Jango. Lott representava a garantia da ordem democrática e Jango trazia o apoio dos trabalhistas às reformas. O povo não quis assim. Elegeu a chapa Jan/Jan. Um desastre. Só depois tive a resposta em uma música do meu ministro Gil: o povo sabe o que quer, mas o povo também quer o que não sabe! Todos nos lembramos do filme triste. O Brasil desceu a ladeira até o golpe de 64.

Aos 62 anos, igualmente feliz, não tenho mais o direito à inocência. A vitória de Dilma traz também apreensões. Fiquei assustado com a virulência da campanha movida nas estradas não policiadas da Internet. Saídos dos porões da ditadura, os torturadores vieram a público acusar a torturada de assassina. Saiu do baú um anticomunismo do tempo da guerra fria. Falou-se até em uma virtual Ursal, União das Repúblicas Socialistas da América Latina, formada pelo Brasil, Venezuela, Bolívia, Equador, Argentina e Cuba. Fundamentalistas católicos e pentecostais ressuscitaram o Padre Peyton e a marcha da família pela propriedade. Até o Papa, chefe de um outro estado, o Vaticano, deu declarações contra o aborto, na antevéspera da eleição. Tudo isso em proveito da candidatura de um ex-presidente da UNE, exilado pela ditadura, ex-militante da Ação Popular, que por ambição eleitoral aceitou estes apoios, e ainda apregoa ser o paladino da ética. Por tudo isso, não posso dizer que estou simplesmente feliz. Estou quase feliz.

Não basta aos cidadãos eleger Dilma. É imperativo garantir-lhe a governabilidade. Ela é o marechal Lott de Lula. Ao mesmo tempo em que deve ampliar e aprofundar o processo de desenvolvimento econômico, com distribuição de renda e com inclusão social, deve igualmente usar de toda a autoridade (e não de autoritarismo) para assegurar as liberdades individuais, a estabilidade econômica, o Estado de Direito e a ordem pública. Ela deverá ser suficientemente forte para governar segundo o mandato que recebeu das urnas, sem se abalar com as intrigas dos udenistas de sempre, com o sensacionalismo de uma imprensa conservadora, nem com a maledicência da Internet. Tampouco deverá atrelar o seu governo aos gritos radicais das ruas e dos campos. Será preciso pulso firme para resistir às provocações e às tentações, pelo bem do Brasil. Que o Misericordioso Senhor do Bonfim dê vida, saúde e coragem para a nossa presidente. Que assim seja, axé!


Ubiratan Castro de Araújo – Integrante da Academia de Letras da Bahia e diretor-geral da Fundação Pedro Calmon/SEC


Publicado pelo jornal A Tarde – em 18 de novembro, 2010.