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Maximalismo e democracia contemporânea

No jargão político do fim do século XIX e dos começos do século XX, chamavam-se maximalistas os movimentos políticos ou sindicais que não queriam ou não podiam negociar nenhum ponto de sua pauta de reivindicações. Era o tudo ou nada. Os jornais noticiaram a revolução bolchevique de 1917 como "movimento dos maximalistas russos". Os minimalistas eram os de Kerenski. Este termo voltou à superfície nos anos 80 do século passado, já no fim da ditadura no Brasil, quando se discutia a instalação da Assembleia Nacional Constituinte. As condições políticas do País eram desesperadoras. Os vários governos militares insistiram em uma diretriz política muito clara de impedir qualquer reorganização política sob a liderança de um partido de oposição. A mão pesada do regime recaiu sobre as lideranças partidárias. O exemplo foi a destruição da direção do velho PCB, conhecido à época como o Partidão, que se opunha ferozmente a qualquer ação radical, desde 1965, que comprometesse a organização da política nas bases da legalidade.

Naquela conjuntura de terra arrasada, emergiram os "movimentos sociais". Esses movimentos caracterizavamse pela pauta de reivindicações específicas ou setoriais, pela autoorganização em entidades civis não partidárias, chamadas organizações não governamentais (ONGs). Assim surgiu o movimento negro, das mulheres, dos semterra, dos semteto, dos financiados do BNH, dos ambientalistas, etc.

Muitos de nós acreditamos que os movimentos sociais tinham substituído os partidos políticos na luta pela redemocratização. As universidades brasileiras dedicaram-se aos estudos e pesquisas sobre os movimentos sociais, notadamente os programas de Sociologia e Ciência Política. Entre 1986 e 1988, quando coordenei o Mestrado em Ciências Sociais da FFCH/Ufba, organizamos com sucesso uma linha de pesquisa intitulada "Estado e movimentos sociais", integrada pelos estudos sobre os movimentos de combate ao racismo, ao sexismo e à homofobia.

No entanto, o debate político e acadêmico terminou por produzir o consenso de que os verdadeiros personagens da reconstrução política eram os partidos políticos e não os movimentos sociais. Constatou-se que era da natureza dos movimentos sociais o seu maximalismo. Cada movimento tinha a sua pauta máxima e nenhum deles se encarregava de compatibilizar o seu conjunto em um programa de governo, de governança possível. Para o processo da Assembleia Nacional Constituinte, firmouse o papel dos partidos políticos como as instâncias organizadoras do equilíbrio possível entre os vários segmentos particulares, em torno de macroprojetos.

A Constituição Cidadã de 1988 consagra a proteção de todos os particularismos, como o são os movimentos sociais. Por outro lado, poucas são as salvaguardas para que os partidos exerçam a necessária mediação entre os governos e os movimentos sociais. Isso tem dado uma certa ilusão insurrecional aos movimentos sociais, o que foi desmedidamente reforçado no movimento "fora Collor". Isso pode trazer inegavelmente grande instabilidade a uma democracia inclusiva e redistributivista "à la Lula". Os partidos políticos que compõem as bases políticas dos governos, que participam da repartição do poder na forma de empresas públicas e secretarias, são excessivamente omissos nos casos de crise institucional, quando deveriam exercer o seu papel de mediação e do convencimento das partes dos seus limites e da perspectiva do bem comum. As principais lideranças partidárias preservamse de desgastes ou rejeições eleitorais junto aos adeptos dos movimentos sociais, e deixam o "seu governo" exposto ao desgaste. Assim foi na greve da PM, assim é na greve dos professores.

Os partidos que compõem a base aliada do governo Wagner são devedores de um movimento político do "bom senso", capaz de restabelecer termos honestos de negociação. E, se os princípios da democracia contemporânea não se ajustam a este fim, retomemos o milenário princípio da equidade republicana romana: "dar a cada um o que é seu!"

Ubiratan Castro de Araújo
Historiador e membro da Academia de Letras da Bahia
ubiratancastrodearaujo@gmail.com

Publicado pelo jornal A Tarde, em 25 de junho, 2012 (pág. 3 Opinião).