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CONEXÃO ATLÂNTICA: HISTÓRIA, MEMÓRIA E IDENTIDADE


RESUMO

Para compreender o processo permanente de elaboração da identidade negra neste país africano da Bahia, é necessário, sobretudo, não esquecer o cordão umbilical pelo qual os baianos acreditam estar ligados à África. Ao longo da história, depois do tempo da escravidão, este mito fundador dos negros da Bahia se adapta, se transforma, muda suas máscaras e seus hábitos para desempenhar o papel mágico de uma espantalho que afasta a tentação, aliás sempre proposta pelas elites brancas, de aceitar a idéia segundo a qual os negros brasileiros seriam um simples produto da sociedade escravista luso-tropical. Para esses negros da Bahia, é necessário estabelecer suas raízes antes e fora da escravidão. Assim, o tempo e o lugar da liberdade original não podem estar dentro do Brasil. Utopia, anacronismo, pouco importa, esse refugio da herança cultural da escravidão é o núcleo duro da identidade negra baiana. Esta utopia identitária fundamenta-se em uma constante evocação e reelaboração da das matrizes culturais africanas, o que só é possível graças às comunidades religiosas do Candomblé, verdadeiros arquivos da memória africana na Bahia.

Palavras-chave: Identidade negra – Cidadania negra – Memória e História Afro-Brasileira

ABSTRACT

To understand the permanent process of elaboration of the Afrodescendant identity in this African country of Bahia, it is necessary, above all, not to forget the umbilical cord through which Bahians believe to be connected to África. Along history, after the slavery times, this founder myth of the Afro-descendants of Bahia adapts, transforms, changes its masks and its habits to perform the magic role of a scarecrow that keeps away the templation, always proposed by the white elite, of accepting the idea according to which the Brazilian Afro-descendants would be a simple product of the slaving Portuguese/Brazilian-tropical society. For these afro-descendants of Bahia, it is necessary to estabilish their roots before and outside slavery. This way, the time and place of original freedom can not be inside Brazil. Utopia, anachronism, it does not matter much, this refugee of the cultural heritage of slavery is the hard nucleus of the Bahian Afro-descendant identity. This identifying utopia bases itself on a constant evocation and re-elaboration of the African cultural matrixes, what is only possible thanks to the religious communities of Candomblé, true archives of the African memory in Bahia.

Key words: Afro-descendant Identity – Afro-descendant Citizenship – Afro-Brazilian Memory and History


A utopia africana

Para compreender o processo permanente de elaboração da identidade negra neste país africano da Bahia, é necessário, sobretudo, não esquecer o cordão umbilical pelo qual os baianos acreditam estar ligados à África. Ao longo da história, depois do tempo da escravidão, este mito fundador dos negros da Bahia se adapta, se transforma, muda suas máscaras e seus hábitos para desempenhar o papel mágico de um espantalho que afasta a tentação, aliás sempre proposta pelas elites brancas, de aceitar a idéia segundo a qual os negros brasileiros seriam um simples produto da sociedade escravista luso-tropical. Para esses negros da Bahia, é necessário estabelecer suas raízes antes e fora da escravidão. Assim, o tempo e o lugar da liberdade original não podem estar dentro do Brasil. Utopia, anacronismo, pouco importa, esse refúgio da herança cultural da escravidão é o núcleo duro da identidade negra baiana. 1

Essas tentações são especialmente apresentadas durante as conjunturas de mudança acelerada dos termos de integração do Brasil em uma economia mundial, durante as quais foram registradas algumas medidas importantes para a modernização da sociedade brasileira e, por conseqüência, das relações raciais no país. Entretanto, o fracasso de todas as sinceras tentativas de desenvolvimento das novas identidades negras nessas conjunturas de modernização explica o retorno dos movimentos de afirmação do negro à tradição africana, tal como ela é preservada dentro das comunidades religiosas.

Os Nagôs e os Sabinos: a formação do Estado Nacional Brasileiro

Por volta do fim do século XVIII, no início do século XIX, o Ocidente foi sacudido pela primeira vaga de revoluções liberais, desencadeadas pela independência dos Estados Unidos da América, pela Revolução Francesa, pela Revolução dos Negros do Haiti, e pelas Revoluções produzidas pela expansão napoleônica na Europa, e pelo desmoronamento do Império de Portugal. Dentro desse novo momento da mudialização, fundado sobre o ?livre comércio? e sobre a universalização dos direitos do homem, dois desafios se apresentaram para a sociedade escravista brasileira: o fim do pacto colonial com a metrópole portuguesa e o fim do tráfico de escravos africanos.

No que diz respeito ao primeiro desafio, foi necessário às elites coloniais formarem um estado independente, com novas instituições, com uma ideologia nacional e com novos critérios de enquadramento dos povos habitantes do território do novo estado americano. Dentro dessa nova nação, quem seriam os brasileiros? As minorias de ?brancos portugueses e de brancos da terra? ao lado da maioria de escravos africanos, escravos crioulos, de pretos e pardos libertos e livres? Um novo regime político, ainda que exaltando um liberalismo semeado por todos os lugares, seria capaz de aceitar a universalização dos direitos de cidadania em benefício das pessoas de cor? A Revolução Francesa, ela mesma, não foi capaz de aceitar as reivindicações de Vicent Ogé para o alargamento dos direitos de cidadania para os negros de São Domingos – esta é a origem da Revolução Negra Haitiana. Da mesma maneira no Brasil, os independentes tiveram necessidade de pessoas de cor para carregar os fuzis, mas não os incorporaram como negros cidadãos.

Neste quadro muito estreito de escolha, as populações negras da Bahia se dividiram em dois movimentos. Os negros nascidos no Brasil, chamados na época de crioulos – libertos, escravos e negros livres – escolheram o caminho da participação no processo de formação do estado nacional, reclamando para eles uma nova identidade nacional, assim como na América Espanhola, sob o impulso do movimento bolivariano. Segundo o barão de Aramaré, um general baiano, estes negros eram pessoas sem pátria, que desejavam fazer um a seu modo, contra aquela dos descendentes dos portugueses, verdadeiros brasileiros. Esta massa crioula constituiu a base armada das revoltas e dos levantes populares, desde a Revolução dos Búzios, em 1798, até 1838, por ocasião do aniquilamento da revolução federalista chamada Sabinada. O saldo dessa participação política foi muito negativo: a manutenção da escravidão negra, a exclusão política pela adoção do voto censitário e o reforço da discriminação contra os negros segundo o critério da cor da pele. Em lugar de uma república liberal, eles viram se afirmar um Império Brasileiro escravista. Abatidos, humilhados, esses negros brasileiros fracasssaram nos seus propósitos de afirmação de uma identidade brasileira plena, a seu modo.

Os negros nascidos na África, escravos e libertos, rechaçados por todos, brancos e negros brasileiros, foram estimulados a empreender várias revoluções escravas. De 1811 até 1835, por ocasião do levante dos africanos islamizados chamados de Malês, suas esperanças foram renovadas. Para esses revolucionários, não estava em questão a criação de um novo Estado Americano mas, simplesmente, a superação do estatuto da escravidão e a colocação, em seu lugar, de um estado negro fundado sobre as tradições africanas. Derrotados como os outros, eles guardaram ao menos a honra do bom combatente. A propósito desses combatentes, foi formado o mito da resistência africana, com um forte apelo identitário.

A Abolição e a República

No final do século XIX, tempo do cientificismo e do imperialismo, as elites brasileiras propuseram, mais uma vez, a modernização da sociedade brasileira. O Brasil era o último país escravista do Ocidente e a única monarquia na América. Era necessário então abolir a escravidão e proclamar a república. E os negros brasileiros, que pensavam eles? Abolição, sim, mas com o direito a terra e ao trabalho. República sim, mas com a ampliação dos direitos de cidadania para todos os brasileiros. Para miséria deles, foram considerados pelos republicanos positivistas como pouco civilizados para o trabalho qualificado e para a liberdade. Assim, o novo regime republicano brasileiro decidiu pela substituição da mão-de-obra escrava pela mão de obra livre pela via da imigração européia. No que diz respeito aos direitos de cidadania, a Constituição de 1891 decidiu pela incapacidade política da maioria negra, recentemente saída da escravidão, excluindo-os do direito ao voto sobre o pretexto do analfabetismo. Era ainda uma questão de cultura! Existiam no Brasil pessoas civilizadas e outras bárbaras. Esta república constituiu então uma espécie de colonialismo interno pelo qual os verdadeiros brasileiros seriam aqueles que guardariam, dentro da sua cultura, os traços construtivos da civilização européia.

Era o tempo de civilizar os bárbaros a tiros de fuzis. Essa nova ordem foi finalmente imposta em 1897, quando o Exército brasileiro, sob o comando da esquerda republicana, exterminou o arraial baiano de Canudos, e decapitou milhares de camponeses negros e mestiços, considerados culpados de barbarismo, resistência à modernidade, monarquismo, etc… Ainda no território do massacre, o coronel Dantas Barreto escreveu à família dizendo que ele estava impaciente para retornar à civilização – Rio de Janeiro – porque ele estava, por muito tempo, entre os Tuaregs, no deserto, de fato naquele fim de mundo que era o interior da Bahia? Depois dessa derrota, todos os movimentos negros de integração política fracassaram: os negros republicanos, a guarda negra monárquica e mesmo o Partido Operário Democrático da Bahia, dirigido por antigos negros abolicionistas.

Na experimentação de um papel colonizador, as elites brasileiras e sua republica adotaram as idéias racistas, desenvolvidas na Europa, sob o rotulo da modernidade cientifica. Produziram um sistema de representações que se dizia cientifico, no qual os negros da Bahia e suas tradições africanas foram enquadrados em uma classificação inferior enquanto raça negra africana, portadora de uma cultura selvagem, um perigo potencial à civilização. Era necessário então, segundo esses cientistas do racismo, compreender as diferenças culturais das etnias africanas representadas na Bahia, entender todos os perigos ocultos que eles poderiam aportar contra a civilização e contra a civilização e contra a ordem republicana. Esse barbarismo era muito mais perigoso porque estava disfarçado em práticas religiosas, ou em manifestações folclóricas. A Faculdade de Medicina da Bahia foi um dos centros mais prestigiados no Brasil, nos domínios da Medicina Legal, da criminologia, da Antropologia Criminal. Nessa instituição foram produzidos os critérios da racialização do povo baiano. Era o tempo da Antropologia de Nina Rodrigues.

Da teoria a pratica, o novo regime passara então a considerar toda manifestação publica da cultura negra de origem africana como uma vergonha para o Brasil civilizado. A capoeira foi então declarada como contravenção criminal, assim como a religião africana – o Candomblé. Os grupos de carnaval formados por negros, que desfilavam na rua com motivos africanos – a coroação do rei Ménelik da Ethiopia, por exemplo – foram proibidos pela policia. Não estavam em questão fazer a Bahia parecer com a África.

É assim que os negros da Bahia, para salvar suas identidades, se refugiaram na africanidade originária. Apesar das expedições punitivas da policia, os candomblés resistiram. Apesar das dificuldades, os intelectuais negros, tal como o Prof. Martiniano Bonfim, estabeleceram contato direto com os Agoudas da Costa Ocidental Africana. A pureza africana constitui então o núcleo duro da resistência negra contra o colonialismo interno. Manoel Querino, um antigo abolicionista, desenvolve as proposições sobre o papel do ?colono negro? na formação do Brasil. Segundo ele, a honra dos negros brasileiros seria a sua africanidade, porque o colono negro tinha trazido para o Brasil todas as virtudes do trabalho, da disciplina, da sociabilidade, da espiritualidade, da força civilizatória. Os portugueses, ao contrário, aportaram para o país o resto de suas civilizações, os condenados pela justiça, a violência da conquista, a preguiça dos senhores de escravos.

A democracia Racial.

Depois dos anos 30 do século XX, em seguida a revolução que propôs a modernização do velho Brasil republicano, mais uma vez a questão racial estava no centro da questão nacional brasileira. Os imperativos da industrialização e o surgimento de uma nova classe operaria exigiam um novo enquadramento das classes populares no Brasil. Quem são os brasileiro? É sempre a mesma questão! Um novo paradigma, aquele da democracia racial brasileira, substitui o racismo cientifico de outrora.

Este novo choque de modernidade impôs as elites brasileiras um grande desafio: como integrar as massas dentro de um processo de desenvolvimento, sem os riscos da revolução social e fracionamento do tecido social, levando em conta a diversidade racial da população? Os dois grandes modelos propostos ao mundo, justamente após a segunda Guerra Mundial, eram, de um lado a revolução e o comunismo soviético e, do outro lado, a democracia americana, marcada pela segregação e conflitos raciais permanentes. Como então enquadrar as massas sem perder o controle? Contra o perigo revolucionário, é colocada em ação uma dinâmica social centrada sobre a mensagem de união nacional à procura do desenvolvimento econômico, sob controle do estado populista, interposto entre os burgueses e os operários para amortecer a luta de classes.

No que respeita a população negra, viu-se o estabelecimento sólido de uma ideologia nacional, em que um dos elementos constitutivos era a negação da questão racial. Este novo conceito se apoiara sob a convergência de duas fortes correntes teóricas, da direita e da esquerda. Inicialmente, o desenvolvimento do marxismo como instrumento de analise e ação política, a partir da obra de Caio Prado Jr., recolocara a questão racial no domínio da historia da escravidão colonial, nos termos da expansão do capitalismo centrado na Europa e depois nos Estados Unidos. De fato, a questão racial seria amplamente secundária, pois os descendentes dos antigos escravos são hoje os explorados sob o capitalismo contemporâneo. Do antigo sistema de exploração, restam alguns traços secundários, no domínio da cultura de fato um epifenômeno da superestrutura social. O verdadeiro problema do povo seria sua consciência de classe, o instrumento necessário para o inicio da revolução social e não as identidades fundadas sobre algumas permanências culturais. Esta tradição está enraizada no pensamento de esquerda no Brasil. É a convicção de que a questão racial e as identidades que ai decorrem são questões externas ao Brasil, uma espécie de exportação malvada ou desastrosa de um problema que não interessa senão aos Estados Unidos, e cuja evocação no Brasil somente pode acarretar o fracionamento do proletariado brasileiro.

Do lado da direita, a obra de Gilberto Freyre lança as bases da negação da questão racial no Brasil pela afirmação da democracia racial contemporânea, resultado histórico da adaptação da sociedade patriarcal portuguesa aos trópicos. A apologia da mestiçagem das três raças, do branco, do índio e do negro foi tomada como ideologia de estado para demonstrar e desenvolvimento harmônico do povo brasileiro, um ?povo novo? dentro da versão contemporânea apresentada por Darci Ribeiro. Segundo Gilberto Freyre, estava se estabelecendo no Brasil um tipo ?meta racial? denominado ?moreno?. Uma vez que não havia uma prática de segregação de raças como nos Estados Unidos, a questão racial não aparecia na classificação dos problemas brasileiros. O racismo seria então uma questão americana, e os brasileiros, em seu subdesenvolvimento, deveriam ser muito orgulhosos de terem superado um problema que sempre constrange os ricos americanos.

Para os movimentos negros brasileiros, o grande obstáculo à formação das identidades negras, autônomas e anti-racistas, foi a deportação da questão racial do imaginário brasileiro. Racismo era coisa de estrangeiro, de americano. Diz-se hoje que o pior do racismo brasileiro é crer e fazer crer que não existe racismo no Brasil. Em um cenário contemporâneo de mundialização da cultura e da informação, em que se tornam possíveis as trocas entre vários movimentos negros no mundo, este obstáculo não chega a ser superado. Apesar do surgimento e da estabilização de novas identidades e de práticas sociais formadas dentro destes contatos, do panafricanismo, do black power, do reggae, do hip hop, tudo termina sendo reduzido a uma escala de efêmeros acontecimentos da moda internacional, igualmente estrangeiros em relação ao Brasil.

O único refúgio dos movimentos negros na Bahia para a afirmação de sua identidade, para além da sua herança da sociedade escravista da Bahia, é a tradição africana, guardada com cuidado pelas comunidades religiosas do candomblé. Ninguém ousa dizer que o candomblé, cada um cultivando suas raízes africanas específicas ? suas nações, seja estrangeiro na Bahia. Isto explica o fato de que, desde a experiência política e cultural de Edison Carneiro sob a ditadura do Estado Novo em 1937, até os movimentos de esquerda negra contemporânea, inspirados por ?aggiornamientos? à la Gramsci e Thompson, todos esses marxistas negros procuram dentro do candomblé o relicário de sua identidades ancestrais. Esta co-habitação necessária entre o materialismo e o camdomblé produziu a deliciosa excentricidade cultura que Jorge Amado chamava ?materialismo? mágico.

Os suportes materiais da Utopia

Assim, ao longo da historia do Brasil independente, as comunidades formadas por homens e mulheres muito pobres, colocados em regiões negras nos subúrbios da cidade, todos submetidos ao peso do racismo, foram capazes de constituir um lugar da memória africana. Como isto foi possível? Os que crêem respondem logo em seguida: é o poder dos Orixás!. Os menos crentes estão sempre em condição de afirmar que as características das religiões africanas. Fundadas sobre os cultos dos ancestrais, têm necessidade guardar na memória coletiva toda a ambiência cultural originaria, sem a qual os orixás não teriam sentido. Isto explica o empenho dessas comunidades na preservação das tradições africanas, da língua Yorubá e da recusa à nacionalização do candomblé, tal como ocorreu com a Umbanda.

As razões religiosas, somente, não explicam totalmente o fenômeno da preservação da memória africana. O Candomblé, como aliás as outras tradições, foi atacado por todos os choques da modernidade, e também obrigado a toda sorte de adaptação para assegurar a solidariedade interna nas comunidades. Teve igualmente que estabelecer as negociações e as trocas com ?os outros?, os clientes, os que procuram no Candomblé socorros e cuidados materiais e espirituais. Como fazer para impedir que as adaptações sucessivas não resultem em um tipo de deformação da tradição originária e, por conseqüência, o enfraquecimento desses lugares de memória, sés e bastiões de nossa identidade negra baiana?

Ao longo dos anos, as pessoas do camdomblé desenvolveram estratégias para assegurar a sobrevivência das comunidades e, ao mesmo tempo, para a consolidação desse corpus de memória. Antes de mais nada, era necessário manter o contato permanente com a ?fonte?, com o fundamento, com a África. Durante a escravidão, assim como a aranha, o tráfico transatlântico de escravos teceu sua teia de conexões entre as duas bordas do Atlântico, um verdadeiro e complexos territórios de terras e de águas pelo qual circularam homens e mulheres, com seus bens, seus poderes e seus saberes. Este foi o fluxo e refluxo da Bahia para o Golfo de Benin, de que nos falou Pierre Verger, que ocorreu por meio do transporte de pessoas. Isso tornou possível um sistema de circulação de mercadorias, compreendendo os produtos utilizados nos rituais, como também a circulação de religiosos? Yialorixás, babalorixás e babalôs.

Este vai-e-vem sobre o Atlântico nutriu a tradição religiosa e, por conseqüência, assegurou o fluxo de informações políticas e culturais entre a África e a Bahia. As revoltas africanas do início do século XIX determinaram a chegada, na Bahia, das informações sobre os movimentos sociais na África. Depois do fim do tráfico de escravos, de 1850 até 1889 a navegação na direção da costa da África quase cessou. Apesar da interdição, a antiga teia ancorou seus laços na memória efetiva dos povos sobreviventes, os afro-descendentes baianos na borda oeste e os Agudas espalhados ao longo da borda leste do Atlântico. Persistiu ainda a correspondência entre familiares e conhecidos.

No final do século XIX, a chegada da republica ao Brasil e a ocupação colonial na África impuseram o distanciamento das duas bordas do Atlântico. Alguns religiosos, como o Babalaô Martiniano Bonfim e a Yalorixá Aninha, ainda conseguiram várias vezes realizar a travessia para a Costa da África, durante a primeira metade do século XX. Apesar desses esforços heróicos, aquele foi o tempo mais difícil para a preservação da memória africana no Brasil.

Em 1959, ano da criação do Centro de Estudos Afro-Orientais na Universidade Federal da Bahia, assistiu-se ao restabelecimento das relações bilaterais entre Bahia e África, por força da ação desse encontro universitário, em quadro da diplomacia brasileira para a África. Durante uma dezena de anos, pesquisadores e professores partiram em missão nas duas bordas do Atlântico. Foi assim que os religiosos do Candomblé fizeram a descoberta de que seu modo de falar dos Yorubá, mesmo arcaico em relação àquele falado contemporaneamente na Nigéria, ainda era entendido e louvado nos cursos dados por professores da língua Yorubá no CEAO, vindos da Universidade de Ilê Ifé. Depois de 1970, mais algumas personalidades negras da Bahia tiveram sucesso na Bahia tiveram sucesso na travessia do Atlântico, graças ao apoio da UNESCO e de outros organismos internacionais.

Hoje, constatamos que as possibilidades de contatos entre as comunidades africanas e as afro-baianas, por sus próprios meios, são praticamente impossíveis diante dos custos da viagem. De outra parte, as instituições públicas, tal como a universidade, não tem êxito na constituição dos suportes materiais para assegurar a circulação de pessoas e de idéias entre os dois lados do Atlântico, de forma a realimentar a memória africana das comunidades religiosas da Bahia. Diante do perigo da desafricanização, da dissolução da memória afro referente, em uma conjuntura cultural marcada pela pressão interna para a navegação das identidades negras e da pressão externa da geléia geral globalizante, é imperioso redobrar os esforços para o restabelecimento desta conexão atlântica, condição indispensável para o fortalecimento da identidade negra baiana. É importante reconhecer também que esta conjuntura é marcada por um novo choque de modernidade, com a realização da III Conferência Mundial contra o Racismo, na África do Sul, em 2001, e pela posse de um novo governo de esquerda no Brasil. Esta será, com fé nos Orixás, uma outra história.

REFERÊNCIAS

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______. Sans glorie: le soldat noir sous le drapeau brésilien, 1798-1838.In:CROUZET, François (Org.). Pour l´histoire du Brésil. Paris: Harmattan, 2000. p.527-540.

AMOS, Alcione M. Afro-brasileiros no Togo: a história da família Olympio, 1882-1945. Afro-Ásia, Salvador, nº23, p.175-197,1999.

BACELAR, Jéferson. A Frente Negra Brasileira na Bahia. Afro-Ásia, Salvador, nº17, p.73-85, 1996.

CENTRO de Estudos Afro-Orientais da UFBA (CEAO. Encontro de Nações do Candomblé. Salvador: Ianamá/CEAO-UFBA, 1984.

MATTOSO, Kátia M. de Queirós. Ser escravo no Brasil. São Paulo, SP: Brasiliense, 1982.

MESTRE DIDI (Deoscóredes Maximiliano dos Santos). História de um Terreiro Nagô: crônica histórica. São Paulo, SP: Carthago e Forte, 1994.

OLIVEIRA, Maria Inês Côrtes de. Quem eram os negros da Guiné? A origem dos africanos na Bahia. Afro-Ásia, Salvador, nº 19-20, p.37-73, 1997.

QUERINO, Manoel. O colono preto como fator da civilização brasileira. Afro-Ásia, Salvador, nº13, p.143-158, 1980.

REIS, João José. Rebelião escrava no Brasil: a história do levante dos Malês (1835). São Paulo, SP: Brasiliense, 1986.

RODRIGUES, João Jorge (org.). A música do Olodum: a revelação da emoção. Salvador: Olodum, 2002.

SOUMONNI, Elisée. Daomé e o mundo atlântico. Amsterdam: Brasil: SEPHIS:CEAA, Universidade Cândido Mendes, 2001.

VERGER, Pierre. Fluxo e relfuxo do tráfico de escravos entre o Golfo do Benin e a Bahia de Todos os Santos, dos séculos XVII a XIX. São Paulo, SP: Corrupio, 1987.

ANEXOS

1

Atrás do cordão umbelical

Enterrado lá no Senegal

E em toda a África negra gritando

O Atlântico ouça um conselho

Que se abra como o Mar Vermelho

E a Bahia, o Olodum n´lar adentro voltando.

REIS, Artúlio. Tambores e cores. In: RODRIGUES,

João Jorge (org.). A Música do Olodum: a revolução da emoção.

Salvador: Olodum, 2002. p.153.

2

A Música do Olodum – 23 anos

….?A poderosa música do Olodum é acima de tudo a música dos Yorubás, dos Ibos, dos Gêges, dos Ijexás, dos Kimbundos, dos Umbundos, dos Macuas, negros africanos que vieram do Golfo da Guiné, da costa dos escravos, e da baía de Luanda (Angola) em tamanha quantidade que fizeram de Salvador da Bahia a Roma Negra, a terra dos Gladiadores da Negritude. É também a música do fenômeno religiosos chamado por todo o povo de ?Olodumaré?, o nome de Deus em Yorubá, o nome da rosa, a explosão que criou o mundo, e fez os homens e as mulheres, criou a terra e o mar, o sol, e alua, separou a noite do dia, e deu-nos a capacidade de pensar, sonhar e fazer músicas.?

(RODRIGUES, João Jorge (org.). A Música do Olodum: a revolução da emoção.

Salvador: Olodum, 2002).

3

ABAIXO ASSINADO

Os abaixo assinados, reunidos no Axé Opô Afonjá, por ocasião das comemorações dos vinte e cinco anos de gestão de Mãe Stella de Oxossi desta comunidade religiosa, consideramos que:

Em todos os tempos, os países, os povos e as comunidades vítimas dos atos de guerras têm reclamado reparações pelos prejuízos que sofreram. Freqüentemente, suas postulações foram aceitas e obtiveram compensações materiais ou morais a título de reparação.

No caso da África, muitas vozes tem se levantado para deplorar os numerosos anos de exploração que sofreram os povos deste continente por força da escravidão, do tráfico negreiro e do colonialismo, responsáveis pela pobreza, subdesenvolvimento e desorganização social que aflige todo o continente africano.

No caso das populações afro-descendentes em todo o mundo, e especialmente no caso da população afro-descendente brasileira, a pobreza, a discriminação racial e a exclusão social são os resultados contemporâneos do crime do tráfico e da escravidão contra ela praticado.

Por isso proclamamos o nosso direito à reparação pelos efeitos do tráfico de escravos e da escravidão, entendendo-o como um direito coletivo difuso, do qual é portador o conjunto da cidadania negra brasileira, e exigimos do Estado brasileiro:

O reconhecimento, por ato legislativo, do tráfico de escravos e da escravidão como crimes contra a humanidade.

A reparação moral dos que já sofreram, no passado, a escravidão e a discriminação racial, de modo que se institua o reconhecimento pleno da cidadania negra por todos os brasileiros.

A execução de políticas sociais de impacto imediato, com o objetivo de alterar, a curto prazo, os indicadores das desigualdades raciais no Brasil.

A implantação de programas de longa duração para erradicar os mecanismos sociais e culturais de reprodução da desigualdade racial, de modo que possam estabelecer-se, de fato, as condições iguais de competição entre brasileiros de todas as cores e de todas as tradições culturais, conforme letra e espírito da Constituição Cidadã de 1988.

Para a consecução destes objetivos, reivindicamos:

A constituição de uma comissão nacional para a reparação das populações negras brasileiras, com a participação ampla das representações do Movimento Negro, da sociedade civil e da sociedade política, com estatuto de Secretaria de Estado.

A instituição de um Fundo Nacional de Reparação, cujos recursos sejam fixados por lei e representem um percentual vinculado da receita da União, dos Estados e dos Municípios, durante um período inicial de 10 anos, para o financiamento de projetos especiais de caráter reparatório.

A incorporação em todos os programas e projetos de ação governamental (União, Estados e Municípios) de prioridades e metas relativas à promoção da população negra brasileira.

A negociação de uma convenção reparatória dos danos sofridos pelas populações negras por força do tráfico de escravos e da escravidão, de âmbito internacional, que inclua como beneficiárias as populações africanas e as populações negras da diáspora africana nas Américas. Também neste caso, deve ser proposta a criação de um Fundo Internacional de Reparação, gerido pela ONU, com o objetivo de financiar ações e projetos de promoção das populações negras. Este fundo deve atender diretamente comunidades e não governos e agências governamentais.

Somente assim, a reparação pode constituir-se em um novo pacto de convívio social, expresso por um programa completo, nacional, de longa duração, onde estejam definidos os compromissos da República Federativa do Brasil para a erradicação da desigualdade racial e do racismo no Brasil.

Salvador, 8 de junho de 2001

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Coleção 2 de Julho de Sílvio Robatto

Se é verdade que a fotografia é a arte da luz, Silvio Robatto foi a luz das artes na Bahia do século XX. Já nasceu fotógrafo, por legítima herança do pai Robatto, festejado fotógrafo. Recebeu como dote de casamento a vivência íntima com as artes baianas através uma das mais expressivas lideranças artísticas da Bahia, a dançarina, coreógrafa e professora Lia Robatto. Por isso entendemos a preciosidade do acervo fotográfico que produziu ao longo de sua vida. Registrou e iluminou espetáculos, performances, oficinas, exposições, tanto da dança como do teatro e de outras expressões artísticas populares na Bahia. Como parte deste tesouro, há um lote de negativos com as imagens dos festejos populares do 2 de Julho. Trata-se de uma fonte iconográfica realmente indispensável para o estudo da História da Bahia.


O 2 de Julho tem entrada dupla na História da Bahia. Por um lado é a celebração da vitória brasileira na guerra que assegurou a Independência e a integridade territorial do Brasil, por outro é a história da preservação da memória do dia em que o povo ganhou nas celebrações anuais do 2 de Julho. Em cada celebração anual da vitória, tendo o próprio 2 de Julho como bandeira, o povo fez história, lutando contra a carestia de gêneros, lutando contra a escravidão, proclamando as liberdades individuais, defendendo a democracia contra as várias conjunturas de tirania no Brasil. As fotos de Silvio Robatto são a fonte viva do imaginário popular baiano sobre os elementos fundantes de nossa identidade.


 A divulgação da Coleção 2 de Julho de Sílvio Robatto na Biblioteca Virtual 2 de Julho só foi possível pela gentileza de sua esposa , ex-presidente do Conselho de Cultura do Estado da Bahia, a professora Lia Robatto. Obrigado Lia. Fique certa que a Fundação Pedro Calmon/SecultBA será uma voz firme na defesa da criação de um espaço cultural dedicado ao conjunto da obra de Sílvio Robatto.


Historiador e membro da Academia de Letras da Bahia
ubiratancastrodearaujo@gmail.com

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A geleia geral Soterópolis

Conversando com o poeta Capinan, veio à tona o velho conceito dos tropicalistas da "geleia geral brasileira". É o Bumba-meu-boi de Gil. A mesma dança da multidão vibrante, disforme, excluída, que converge na distribuição da carne de boi virtual! É o nosso Carnaval! Na largada da campanha eleitoral municipal, três receitas se candidatam a dar outro ponto à geleia Soterópolis, que azedou sob o comando de João Henrique. A Receita do Bolinho Popular, da Pipoca e a do Vovô, todas com iguais chances de vitória.

A turma do Bolinho Popular, não sei se de estudante ou acarajé, finalmente definiu uma aliança eleitoral respeitável com a cabeça do PT e o auxílio luxuoso de uma vice do PCdoB. Nos planos federal e estadual, o PCdoB tem sido um aliado fiel do PT. Na política municipal, nem tanto. Esta era uma fraqueza das esquerdas em Salvador. As duas formações políticas têm antigas interlocuções com as massas urbanas despossuídas. Quem não se lembra do "Trabalho Conjunto", nos anos 70, na periferia de Salvador? Este movimento político levou ao Palácio Thomé de Souza Lídice da Mata, que sofreu pressão do ACM estadual e do Fernando Henrique federal. Parece que fizeram um poderoso ebó, que afastou do poder municipal esta articulação da esquerda. O PT, nascido no final da ditadura, firmouse como partido vitorioso nos planos federal e estadual, aguarda uma política municipal vitoriosa. Esta receita de bolinho tem sustança e enfrenta desafios que lhe podem ser fatais. Ela precisa, antes, arrumar o Tabuleiro da Baiana e demonstrar para a atônita geleia como o alinhamento com Dilma e Wagner pode trazer projetos que realmente mudem para melhor a vida do povo de Salvador, que tem bom gosto para bolinhos...

A Receita da Pipoca é muito apropriada à cultura baiana. No Carnaval, chamamse "pipocas" os foliões apaixonados que dançam, pulam e são espremidos fora das cordas dos blocos e trios. A política municipal produz igualmente uma multidão de pipocas, somente visível através da mídia eletrônica, especialmente nas ondas do rádio. Fora das cordas das representações políticas e sindicais, esta multidão pipoca não tem canais de comunicação efetiva com o poder municipal. Um minuto de reclamação no rádio é o único pulo possível para esta massa de munícipes diversos e desorganizados. Eles terminam por constituir os radialistas como portavozes de suas reivindicações e indignações. A cidade já teve um prefeito radialista, Fernando José, o animador que "matava a cobra e mostrava o pau". Hoje, o PMDB resolveu lançar a candidatura de um radialista de sucesso. Segundo o grande chefe de cozinha desta turma, o antropólogo Roberto Albergaria, que protestem todos, todo o tempo, desopilem o fígado e elejam quem sabe governar e já foi duas vezes prefeito da Soterópolis, há muito tempo! A maioria dos atuais leitores nem era nascida, e os remanescentes nem se lembram mais que ele foi o prefeito biônico de ACM. Se as duas outras receitas não entusiasmarem, a tentação da Pipoca midiática poderá ser vitoriosa. Por fim, há a tradicional e requentada Receita do Vovô, trazida por um jovem deputado, neto do finado ExTudo da Bahia. A volta ao passado é um remédio recorrente para desiludidos e derrotados da história. Na Bahia ainda constitui uma força considerável, posto que garante um eleitorado saudoso e cativo de 30% de votos, capaz de eleger o neto da entidade para sucessivas legislaturas. O primeiro ponto a ser considerado é a capacidade de multiplicação deste contingente de eleitores em uma conjuntura de desilusão política. A bem da verdade, o jovem deputado tem buscado modernizar as práticas do Vovô, movido pelo empenho em impedir a extinção nacional do partido que tem no seu DNA toda a história da extrema direita brasileira: Arena, PDS, PFL, DEM. Com a sua recondução ao Parlamento assegurada, nada tem a perder. Cultiva o jeito de menino prodígio, escovadinho e bonitinho, para a admiração da vereadora Léo Kret. O gosto pelo "old fashion" não deve ser negligenciado.

O jogo está feito, que seja o que o povo quiser. Axé.

Download do artigo  publicado pelo jornal A Tarde - em 13 de julho, 2012.

Historiador e membro da Academia de Letras da Bahia
ubiratancastrodearaujo@gmail.com

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Resgnificação do Dois de Julho, a Festa do Povo




Desde a sua posse, o governador do Estado, Jaques Wagner, tem buscado a resignificação do 2 de Julho como data de referência nacional. O que esteve em disputa na Bahia foi a Independência do Brasil. A palavra-chave para entender a Guerra de Independência é Recolonização.

No sentido contrário da progressiva autonomia política e econômica do Reino do Brasil, desde janeiro de 1808, com a abertura dos portos do Brasil ao comércio internacional, surgiu nas Cortes – Assembleia Constituinte portuguesa – um movimento político nacionalista radical, pela regeneração do Reino de Portugal, devastado pelas guerras napoleônicas e praticamente ocupado pelas tropas britânicas, comandadas pelo Lord Beresford.

As principais medidas que compunham o pacote de recolonização eram: a volta de D. João VI a Lisboa, de modo a restaurar o Reino de Portugal como metrópole do Império Português; o restabelecimento do monopólio português sobre o comércio exterior do Brasil, revogando a Abertura dos Portos de 1808; a exclusividade dos nativos de Portugal no exercício de todos os cargos públicos no Brasil, inclusive na força armada.

Para este partido nacionalista português, o Brasil deveria pagar a recuperação econômica e administrativa de Portugal. E os brasileiros disseram não!

A Bahia foi o cenário do afrontamento entre os dois partidos antagônicos, o da recolonização, dos portugueses, e o da Independência, dos brasileiros.

A corporação comercial portuguesa na Bahia e suas matrizes em Portugal fizeram vir para a Bahia a Legião Constitucional Lusitana, sob o comando do general Inácio Madeira de Melo, que expulsou as tropas do Reino do Brasil da Cidade do Salvador em 19 de fevereiro de 1822 e assumiu, como ditador, o governo da Bahia, para impedir a independência do Brasil.

A reação brasileira veio das vilas do Recôncavo baiano, que organizaram o primeiro governo independente do Brasil, na Vila de Nossa Senhora do Rosário do Porto da Cachoeira, em 25 de junho de 1822, dois meses antes do 7 de Setembro.

Para celebrar esta iniciativa dos baianos, o governo do Estado propôs à Assembleia Legislativa a transferência da capital da Bahia para a cidade da Cachoeira a cada 25 de Junho, e assim o foi desde 2008. Isto implica o reconhecimento do protagonismo do interior da Bahia na libertação da sua capital.

Além do 1º Governo Provisório da Cachoeira, o Exército Brasileiro teve o seu batismo de fogo com o nome de Exército Pacificador, em Pirajá, composto por soldados de várias classes sociais, de várias cores e de variada origem regional brasileira, sob o comando do bolivariano general Pedro Labatut.

Do mesmo modo, a Marinha de Guerra do Brasil arvorou pela primeira vez a Bandeira brasileira em combate, a partir de abril de 1823, com a frota de nove navios comandados pelo almirante Cochrane e a flotilha de oito escunas artilhadas comandadas pelo capitão João das Botas.

Para celebrar o nascimento destas instituições nacionais, o governador incluiu nas comemorações do 2 de Julho uma cerimônia de continência à Bandeira, no Forte de São Marcelo, no dia 2 de Julho, às 14 horas, repetindo o gesto de vitória de João das Botas em 1823, bem como a homenagem à Ala Esquerda do Exército Pacificador, que entrou vitorioso no dia 2 de Julho pelo norte da cidade, estacionando no Forte de São Pedro, quando o cortejo cívico passar em frente a este tradicional bastião das tropas brasileiras.

Por fim, a resignificação do 2 de Julho implica a restauração plena do protagonismo das forças populares na Guerra de Independência da Bahia.

O grande símbolo do patriotismo popular é o caboclo. Para celebrar este protagonismo, a Fundação Pedro Calmon (FPC) estará ao pé do caboclo, no Campo Grande, entre os dias 3 e 5 de julho, onde desenvolve uma série de atividades culturais.

No dia 5 de julho, acompanharemos todos a volta do caboclo para o seu barracão na Lapinha, o que repete o movimento de desmobilização do Exército Pacificador, no dia seguinte ao Dia em que o Povo Ganhou, quando as elites brasileiras excluíram o povo da construção do Brasil independente, impondo a monarquia e a escravidão contra a vontade popular.

Este contencioso tem animado, ao longo de 186 anos, a participação dos baianos nesta festa patriótica do povo da Bahia.

Ubiratan Castro de Araújo é membro da Academia de Letras da Bahia, diretor-geral da Fundação Pedro Calmon/Secult (Secretaria de Cultura do Estado da Bahia)
Publicado pelo jornal A Tarde no dia 3 de julho de 2009.