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NOVOS REIS, NOVO CARNAVAL




No ano de 2008, meu amigo Clarindo Silva foi escolhido Rei Momo. A celeuma foi grande. Um rei momo magro, onde já se viu? Em 2009, o escolhido foi Gerônimo que, apesar de gordinho, nada tem do modelito Ferreirinha: indolente, beberrão e comilão.

Este ano, o novo rei é Pepeu Gomes, um elétrico guitarrista. Estas escolhas marcam a ruptura do carnaval baiano com Baco e suas bacanais. Os novos reis devem ser ativos, produtivos e performáticos.

Esta mudança corresponde às mudanças que, ano a ano, viraram o carnaval de ponta a cabeça. Os carnavais de minha infância eram realmente janelas de alegria e de descontração que se abriam em um quotidiano regulado por uma moralidade religiosa e por todos os freios do conservadorismo.

Imaginem que naquele tempo era impensável um homem ou menino usar roupas coloridas, camisa estampada ou qualquer peça cor de rosa. Certamente ele seria agredido nas ruas com adjetivos nada gentis: fresco, florzinha, Florípedes.

No carnaval valia tudo, tudo era fantasia, com máscara ou sem máscara. Valia até sair travestido de mulher, e mesmo de “nigrinha”.

A liberação dos costumes permitiu que, o ano inteiro, as meninas saíssem da janela e fossem a luta no entre-e-sai e no esfrega-esfrega.

Até na música o carnaval era a salvação. O ano todo ouvia-se Cauby cantando algum drama comovente, tal como “ Conceição” ou com “Tarde fria, sinto frio na alma”. Só no carnaval podia-se ouvir o “Índio quer apito”, a “lambretinha” e a “mulata bossa nova”.

Não leiam mais Bakhtin, o carnaval não é mais a inversão da ordem. O carnaval ganhou e na Bahia é a ordem o ano inteiro! Longe de sumir no quotidiano, o carnaval é a cerimônia frenética e em tempo integral para a celebração da nova ordem. O Olodum tem razão: “Olodum tá hippie, tá pop, tá reggae, tá rock. Olodum pirou de vez!”.

No nosso novo carnaval, Eros expulsou Baco. Em vez de contestar a quaresma católica e afrontar a quarta-feira de cinzas (quase ninguém se lembra dela), o carnaval é o espaço para se vivenciar a saúde, a vitalidade, o prazer do corpo, o que os antigos gregos chamavam de Erótica.

Nesta nova ordem, os mais velhos são rigorosamente excluídos; ou vão para Pelourinho, ou chegam até um protegido camarote, ou ficam em casa assistindo pela TVE. Para nós, o carnaval é o voyeurismo; o prazer de ver os jovens gozarem!

Nesse novo carnaval, o rei Momo deve representar esta vitalidade erótica. Que Exu proteja Pepeu para que ele represente dignamente o seu papel!

*Ubiratan Castro de Araújo – historiador e membro da Academia de Letras da Bahia
Artigo publicado pelo jornal A Tarde no dia 15 de fevereiro de 2010.

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Jorge Amado, um Testemunho de Leitura




Uma obra fundadora de identidade e reveladora do protagonismo histórico de um povo, o povo baiano, deve ser analisada sob vários pontos de vista. Não sou especialista em produção literária, portanto não comentarei a escrita de Jorge Amado. Como cidadão comum, leitor de Jorge Amado, sinto a oportunidade de dar um depoimento sobre a leitura de minha vida, que se juntará às justas homenagens da Bahia ao seu romancista.

A análise da produção literária não dá conta da avaliação da pertinência cultural de uma obra. A escrita tem a sua historicidade, os seus condicionamentos psicológicos, os seus paradigmas narrativos e estéticos. No entanto, o autor não tem o controle de sua obra após a publicação. Lembro-me da sabedoria de menino empinador de arraias. Dizíamos com convicção:

-Arraia no ar é passarinho! Ou seja, qualquer um pode pegar.

A leitura tem também a sua historicidade e seus condicionamentos. Mais grave ainda quando há evidentes conflitos entre a escrita e a leitura de uma obra. Uma obra universalista como a de Jorge Amado permite leituras variadas, às vezes conflitantes e rebeladas contra o escritor. Não podemos também esquecer o aparecimento de surtos de uma patologia de nossa civilização, um regicídio virulento que tem vitimado pessoas que atingem grandes índices de exposição na mídia e gozam de grande prestígio e admiração nas sociedades. A casuística é farta, Da Imperatriz Sissi, a John Lenon, muitas foram as vítimas. Porque não Jorge Amado? Afinal é chic criticar Jorge Amado.

Lembro dos meus distantes 15 anos, aluno do Central que se preparava para o vestibular. Em plena ditadura, o acesso aos grupinhos que estudavam o marxismo-leninismo era uma verdadeira aventura. Dentre outros desafios estava o de ler conceitos teóricos saídos da filosofia e da sociologia (descoberta do curso colegial). Trazia na minha bagagem de ginasiano o gosto pela história e pela literatura. Como entender realmente a “luta das classes”, “o proletariado”, “a classe operária revolucionária”? Ler Jorge Amado foi a minha valia. Ali estavam em carne e osso os conceitos dos manuais. O povo baiano era um exemplo do proletariado explorado. Eram os lavradores de Ilhéus abatidos em tocaias pelos coronéis latifundiários, eram os pobres urbanos discriminados e abandonados: pescadores, negros, meninos de rua, bêbados e prostitutas. No interior deles, os operários e sindicalistas, organizados pelo movimento comunista internacional, davam o sentido revolucionário às lutas do povo. Os personagens amadianos eram os portadores desses conceitos sociológicos. Balduíno foi o meu grande herói. Menino negro, órfão, criado por um babalaô-Jubiabá, boxeur e freqüentador do brega, era também um estivador sindicalista, grevista e comunista. Aí eu entendi o conceito lucaksiano de classe em si e classe para si. Negro do candomblé era o pertencimento histórico de Baldo ao proletariado baiano. Grevista estivador era o seu pertencimento à classe trabalhadora revolucionária. Afinal dizia Jorge: -A greve é a festa do povo!

Ao fim dos anos 50 e início dos anos 60 um terremoto abalou a militância comunista em todo o mundo. A revisão do estalinismo e a revelação dos seus crimes no 20º Congresso do Partido Comunista da União Soviética provocou uma debandada, principalmente de intelectuais que buscavam no socialismo a materialização de um ideal de justiça social e de igualdade e não apenas o exercício do poder. Jorge Amado foi um deles. E a sua escrita mudou. Ficou descomprometida, fútil ou de direita como afirmam alguns dos seus detratores? Eu não li isso em Jorge Amado.

Os tempos mudaram e minha leitura também. Minha geração operou uma ruptura majoritária com o estalinismo, generalizaram-se as descontências e as dissidências, que terminaram por reduzir à insignificância o velho Partidão brasileiro. Motivos não faltaram: a invasão da Hungria, o esmagamento da primavera de Praga, a universalização do Maio de 68 francês. Deixei de buscar na leitura de Jorge Amado a historicidade das lutas das classes. Passei a buscar a complexidade das lutas do povo, considerado em seus particularismos e na sua diversidade cultural e política.

É como se os vários segmentos proletários experimentassem sua emancipação da ditadura operária. Quincas Berro d’água não precisa mais de um estivador revolucionário para dar sentido à rebeldia do seu “lumpenproletariado” do Pelô. As mulheres saem da escravidão da família burguesa patriarcal para exercerem a sua liberdade sexual, profissional e humana. Nunca mais uma mulher amadiana, destruída pelo conservadorismo, jogada no meretrício, precisaria de um Baldo revolucionário para lhe criar o órfão. Agora, Gabriela aprendera a monitorar o seu querido corninho turco, Dona Flor se dava ao luxo de gozar com dois maridos e Tieta do Agreste se soltava como prostituta modernizadora.

Outra imprecisão dos críticos de Jorge Amado é a confusão entre a sua aposentadoria da militância comunista, que aliás foi completa (profissionalismo, clandestinidade, prisão, exílio) e a possível conivência do escritor com a ditadura militar, representada na Bahia por Antonio Carlos Magalhães. Segundo a sabedoria da cantora Carla Perez, uma coisa é uma coisa e outra coisa é outra coisa! Uma certa trégua entre velhos, com favores recíprocos e respeitos recíprocos não caracterizam cooptação ou traição. (Este é um conceito pejorativo que anda em moda ultimamente). Para mim, não diminui em nada minha admiração pelo revolucionário cubano Fidel Castro, amigo do então governador da Bahia ACM. São coisas de velhos que nós devemos respeitar. O importante é que não me lembro de nenhum texto amadiano de apoio à ditadura. Às vezes um autor atira no que viu e mata o que não viu. No seu despretencioso livro Farda, fardão e Camisola de dormir, Amado analisa e ridiculariza a tentativa da ditadura do Estado Novo (1937) de implantar um acadêmico biônico na Academia Brasileira de Letras. Parecia que ele estava escrevendo para toda uma geração, que enfrentava em 1976 a ação nefasta das ASI- Assessorias de Segurança e Informação, sempre dirigidas por um coronel aposentado, que nas Universidades formavam a lista negra dos subversivos e impediam qualquer candidatura destas ao magistério superior. Para mim e para outros que compunham estas listas, foi preciso toda a habilidade e conspiração receitada por Jorge.

É nos anos 70 que a escrita de Jorge Amado e a minha leitura dão um salto significativo. A sinergia entre a escrita de Jorge Amado e a minha leitura foi perfeita. O intelectual orgânico do movimento comunista passa a assumir o papel de intelectual orgânico do movimento negro do candomblé. A virada se dá no romance Tenda dos Milagres. A cultura negra do candomblé sempre esteve presente na obra amadiana, como integrante do naipe dos explorados e perseguidos. Neste romance, Jorge Amado participa do surgimento do Movimento Negro Unificado que busca a autonomia programática e operacional do movimento contra o racismo e pela reparação da população negra das seqüelas da escravidão. Neste romance ele dá vida a um personagem que passa a ser um paradigma do movimento negro: o Oju Obá Pedro Archanjo. Se Balduíno foi o primeiro herói negro de nossa literatura, do candomblé, foi acima de tudo um socialista e sindicalista, Pedro Archanjo foi um herói negro autônomo, dedicado exclusivamente à luta contra o racismo e portador de todo um conhecimento religioso, histórico, sociológico e antropológico obtido dentro do Candomblé, pelo mecanismo próprio da iniciação.

Quando exerci a direção do CEAO/UFBA (1999-2003), A luta mais difícil e mais radical que enfrentei foi contra a vetusta congregação da Faculdade de Medicina da UFBA. Eles insistiam em expulsar do prédio da velha faculdade no Terreiro de Jesus o Museu Afro-Brasileiro, administrado pelo CEAO, uma criação do babalaô acadêmico Pierre Verger. O verdadeiro líder de todos eles era o egun do Prof. Nilo Argolo que buscava uma revanche contra Pedro Archanjo. Rejeitavam tudo que havia no Museu. Eram peças vindas de África, da Europa e da Bahia. Para eles era tudo lixo. A pressão já estava em um grau insustentável. Eles marcaram uma reunião conjunta entre a Congregação da Medicina e o CEAO, na qual provavelmente se resolveria a questão. Eu tremi nas bases. Do nosso lado, somente eu, diretor, tinha uma titulação completa. Era licenciado, era bacharel, era mestre e doutor, mas era sozinho. Do lado deles certamente estariam uns dez doutores, ex-diretores, gente de poder. Por um momento pensei em ser um Pedro Archanjo. Faltava-me legitimidade. O meu conhecimento era da mesma natureza do deles. Era um simples 10 X 1. Reli a Tenda. Tive o bom senso de fazer uma romaria para a Senzala do Barro Preto para pedir socorro a um verdadeiro Pedro Archanjo, Antonio Jorge dos Santos, o Vovô do Ilê Ayê, Obá de todos nós. Não deu outra. Quando os doutos da congregação, todos fardados de jaleco, com um estetoscópio pendurado no pescoço, mesmo os aposentados, me viram entrar com Vovô, eles tremeram nas bases. Vovô foi perfeito, um verdadeiro Oju Obá. Educado, cerimonioso, falando com toda a autoridade de um líder negro, rebateu com energia os argumentos dos médicos. Após isso, eles nunca mais nos ameaçaram. O personagem de Jorge Amado vive!

Este depoimento é para materializar a minha convicção de que Jorge Amado é merecedor de todas as homenagens do povo da Bahia.

Ubiratan Castro de Araújo
Da Academia de Letras da Bahia

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Visitante Indesejado(Conto do Livro Sete Histórias de Negro-II)

Ubiratan Castro de Araújo


Outro caso doloroso era o da Tia Zefinha. Nossa tia-avó tinha mais de 80 anos, a mais velha da família. Ela era magrinha, de cabelos lisos e grisalhos, penteados em uma rodilha presa por longos grampos, atrás da cabeça. Exímia costureira, tinha o dom de transformar roupa velha em roupa nova. Costurava para fora, mas também costurava em domicílio. Por força de sua profissão, passava longas temproadas nas casas das brancas da Barra. Justiça seja feita, ela sempre foi fascinada pela Casa Grande. Nascida ainda no tempo da escravidão, absorveu todos os preconceitos contra os negros. Ela discriminava ostensivamente as irmãs, sobrinhas e sobrinhos netos de pele mais escura.

Racismo à parte, era uma velhinha fascinante. Viúva sem filhos, desenvolveu a arte de contar histórias da carochinha e histórias do tempo antigo, o tempo da escravidão. A pequena loja de subsolo em que morava, na Rua do Desterro, era um verdadeiro baú de preciosidades. Para as meninas, as grande tentações eram as caixinhas de costura, muito arrumadinhas, delicadamente enfeitadas, cheias de miudezas. Também faziam sucesso as antigas revistas de moda, em sua maioria francesas, com fotos de manequinas e “debuxos” de vestidos. Par aos meninos, a paixão eram livros de contos de fadas e a fabulosa coleção dos fascículos de uma revista chamada Eu Sei Tudo, tradução brasileira da Que Sais-je? Ela também guardava uma coleção completa do Tesouro da Juventude.

Era uma velha sábia. Mesmo asism Bernardo a perseguia. Desde a morte de seu marido, o marceneiro João Guarani, criou uma relação de clientela com uma família da Barra. Pssava dias e mais dias remontando, encurtando e ajustando velhas roupas a novas modas e a novos corpos. O pagamento variava sempre em função da sorte do dono da casa, no jogo. Segundo O DIVA, a casa dele vivia sempre aberta à jogatina. Até a honra da filha foi jogada na mesa do carteado. Apesar de tudo, nunca lhe faltou o sustento, nem a pose de rico. Para Tia Josefina, faltava.

Muito orgulhosa, ela jamais pedia nada, apenas recolhia-se à sua casinha. Os parentes procuravam visitá-la com frequência para detectar os sinais da visita de Bernardo. De vez em quando, ela era sequetrada por algum sobrinho, para a alegria das crianças. Quando menos se esperava, ela fugia, sempre alegando o chamado de sua vasta freguesia. Um outro caso provocava uma verdadeira guerra fria na assembléia feminina, as simpatizantes dos russos comunistas contra as fascinadas habituês do cinema americano.

João da Cruz era um grnade militante sindicalista, membro filiado e dirigente do Partido Comunista. Era um negro alto, cabelo cortado à escovinha. Orador de verve tão empolgante quanto o Padre Sadoc, se admitirmos a verdade sociológica que Stalin representava para um o que Jesus Cristo representava para o outro. Estava sempre à frente da greves do sindicato e dos comícios e pichações de paredes organizadas pelo Partido. Nos anos da Aliança Nacional Libertadora, era o intrépido lançador de galinhas pintadas de verde nos comícios dos integralistas. Por sua militância, era um homem marcado pelo Dops e conhecido de todos os secretas do bairro.

A segurança para tanto arrojo era a certeza que o Partido cuidava do sustento e do bem estar de sua mulher e de sua filha, nas eventualidades de prisão ou de cladestinidade. Pois bem, essa não era a experiência de sua mulher Alzira e de sua filha Olga.

Lá um dia, João da Cruz sumiu de casa. Isto aconteceu logo depois do bate-boca entre Juraci e Prestes no Congresso Nacional. O presidente Dutra aproveitou a oportunidade para cassar o registro do Partido Cominista. Iniciava-se um novo ciclo de perseguições, que incidiram imediatamente sobre João, que era muito visado. Logo no primeira dia, apareceu um companheiro de partido, de codinome Berto. Disse que fora designado para dar assistência à família de João. Falou, falou, falou. Para não perder a viagem, foi logo dando uma entradas meio ousadas para o lado de Alzira, que o repeliu na tampa.

– Onde já se viu? Procurar ousadia com a mulher de um revolucionário! Não sou eu que vou dar o pretexto a nenhum burguês reacionário chamar meu marido de corno!

– Que é isso camarada! Você entendeu mal. E nunca mais apareceu.

Também os vizinhos e conhecidos se afataram, com medo de ficarem visados. Os investigadores de política, conhecidos como secretas, vigiavam permanentemente a casa, de tal forma que mãe e filha se sentiam em prisão domiciliar.

Um visitante conseguia furar o bloqueio policial: Bernardo. Nos três primeiros dias, acabaram-se o feijão, a farinha e a carne do sertão. sobrou um pouco de café e um saco demilho-alho, bom de fazer pipoca. E durante sete dias elas tomaram chafé com pipoca. Olguinha choramingava muito.

– Atotô, meu pai Omolu, não me abandone!

Em um sábado de manhã, bateram na porta. Era Pezão, filho de Abigail, a irmã mais velha de Alzira. Tinha vindo da feira de São MIguel, onde comprara os aviamentos para uma obrigção de orixá. Ele foi logo comentando:

- Cadê Tio João? Não estou gostando nada da cara de vocês. Vocês estão de Bernardo?

As duas não disseram nem que sim, nem que não. Sorrindo sem jeito, não escondiam a vergonha.

Pezão foi embora muito constrangido. Lá pelas 4 horas da tarde, ele apareceu de novo.

– Minha mãe está precisando de ajuda, pra festa de Omolu. Ela sabe que Tio João não gosta de Candomblé, mas ele nem está aí, não é? Olhe, minha tia, lá na roça não tem luxo não. É comida braba. Tem o Sobe-e-desce! É água, carne de sertão, quiabo e abóbora, subiu, desceu, comeu!

Olguinha riu muito. Alzira juntou os panos, pegaram o bonde do Retiro e deixaram Bernardo sozinho em casa.

Na minha infância, nunca tive medo de diabo nem de inferno. Medo mesmo era de Bernardo. Por isto, saía das rezas muito confiante e vitorioso. Afinal, quando o francês São Roque se juntava com o nagô Omolu, botavam o tal Bernardo pra correr.

Ubiratan Castro de Araújo é doutor em História, membro da Academia de Letras da Bahia (ALB) e diretor da Fundação Pedro Calmon

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Projeto de futuro




Filho separado de pai, quebrando as linhagens que identificavam as etnias e nações; filha separada de mãe, destruindo as famílias que consolidavam as solidariedades grupais: esta foi a tragédia que se abateu sobre os povos africanos. Desde meados do século XV até meados do século XIX, mais de 20 milhões de homens e mulheres foram arrancados da África e mais de 12 milhões chegaram às Américas. Acorrentados, vendidos como mercadorias (peças), jogados na máquina infernal dos engenhos e plantações, com seu trabalho, com a sua inteligência, com as suas culturas, eles construíram o Novo Mundo. Os muitos milhões de seus descendentes formam hoje esta Nova África desterrada que nós chamamos de Diáspora Africana.

Os que ficaram na Velha África suportaram durante mais de um século a dominação colonial européia, que explorou as suas forças, que sugou as suas riquezas naturais, que aboliu suas independências e liberdades.

Durante meio milênio, os africanos e seus descendentes em todo o mundo estiveram subordinados à expansão e desenvolvimento de um capitalismo mundializado, com sede na Europa, para a afirmação de uma pretensa superioridade da civilização ocidental. Resistentes em toda a parte, durante todo o tempo, contra a escravidão, contra o colonialismo, contra o racismo, contra as desigualdades socioeconômicas em cada país e contra as desigualdades impostas nas relações internacionais, este mundo africano levantou-se contra todas as formas de opressão.

Grandes são os desafios que se impõem à II Conferência dos Intelectuais da África e da Diáspora, que se realiza em Salvador, entre 12 a 15 deste mês. No âmbito da Conferência e do Fórum de Diálogos, intelectuais e líderes políticos discutirão os temas da Diáspora e do Renascimento Africano, e produzirão uma Carta de Salvador, na qual estarão indicadas as diretrizes de uma política internacional capaz de tornar prioritário o desenvolvimento social e econômico de africanos e de afrodescendentes em todo o mundo.

A força de nossa aliança está em nossa herança cultural comum. Para cultivar nossas identidades, várias atividades culturais estarão sendo realizadas nestes dias, em toda a cidade. Serão exposições, espetáculos de música, de dança, de teatro, lançamento de livros, mostras de filmes, feiras e degustações das delícias de nossa culinária.

Unidos pela nossa ancestralidade comum, solidários no presente e referenciados por um projeto de futuro, certamente poderemos estimular a formação de uma opinião pública internacional africana e construir uma nova parceria pela igualdade e pelo desenvolvimento, capaz de estabelecer uma interlocução eficaz com os demais blocos e agrupamentos que gerem interesses dos países que se definem como ricos, predominantemente brancos. Deste modo, contribuiremos efetivamente para uma ordem internacional fundada no respeito a todos os povos, na diversidade cultural com igualdade e na repartição eqüitativa de todos os bens materiais e imateriais produzidos pela humanidade.


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Valeu Zumbi


Quando, há muitos anos atrás, uma grande caravana do movimento negro baiano, tendo à frente Mãe Hilda do Jitolu e Vovô do Ilê Aiyê, subiu a Serra da Barriga, em Alagoas, o 20 de novembro estava consagrado como data de celebração da consciência negra. Em 1695, o Quilombo dos Palmares fora destruído e o seu líder, Zumbi, morto e decapitado. Passava para a história o símbolo maior de um dirigente político negro que lutou até o último suspiro contra a escravidão. Ganga Zumba, seu antecessor, acreditou na possibilidade de uma negociação justa com as autoridades coloniais. A paz de Ganga era a derrota do quilombo. Ele desceu a serra com os seus seguidores, colocou-se na beira da praia sob a tutela dos senhores de escravos, e renunciou à luta contra a escravidão, entregando aos senhores os escravos recentemente liberados no quilombo e recusando-se a aceitar qualquer outro fugitivo. Seu destino foi triste. Faminto, re-escravizado, traído, Ganga Zumba morreu.

Zumbi disse não! Reuniu todos os mocambos, fortificou a sede de Palmares e preparou a resistência ao governo da Capitania de Pernambuco. Alguns militantes e historiadores como Joel Rufino dos Santos, se perguntam porque Zumbi e o povo de Palmares resolveram abandonar a velha tática de guerrilhas, pela qual há cem anos- desde 1595 ?circularam em uma rede de mocambos precários que, uma vez destruídos por ataques dos escravistas, rapidamente se refaziam adiante e continuavam a luta? Porque Zumbi preferiu a guerra de posição: fincou pé na Serra da Barriga, fortificou-se e resolveu enfrentar cara a cara o inimigo? Os palmarinos tinham clareza da superioridade militar do inimigo, reunificados após a expulsão dos holandeses, vitoriosos na reconquista de Angola aos holandeses e na destruição do reino cristão do Congo na batalha de Ambuíla. Se assim era, fincar pé em Palmares era morte certa, era suicídio. Hoje, mais de trezentos anos depois a resposta é evidente: naquele tempo era possível ter esperança. Ousar luta,ousar vencer, porque não?

O que cabe a nós, cidadãos e historiadores de hoje, é a pergunta: o que havia de tão valioso que justificava a ousadia temerária daqueles palmarinos? A mesma pergunta pode ser feita em relação aos Malês da Bahia. Porque, ao invés de fazerem mais um levante para sair da escravidão, como os mais de dez que o precederam na Cidade do Salvador, resolveram fazer uma revolução escrava ? A leitura atenta da obra de João José Reis mostra que os Malês tinham consciência que era preciso conquistar a Cidade do Salvador, abolir a escravidão, inverter as hierarquias sociais, para enfim poderem viver plenamente o Islã em liberdade. No caso de Palmares, há evidências que os quilombolas entenderam que era o momento de parar de fugir e assegurar a consolidação de uma cidade-estado em que fosse possível a vida em liberdade.

Para melhor compreendermos essa opção política, é preciso ver em Palmares muito mais do que um refúgio de escravos. Ao longo de cem anos de resistência, os palmarinos construíram um território amplo, formado por vários mocambos ligados em rede. Várias foram as gerações nascidas em Palmares, fora da escravidão. Eles formaram um povo palmarino, sem o trauma da derrota originária da escravização em África e sem a vivência da escravidão no Brasil. Desenvolveram ao longo dos anos a capacidade de absorção e de re-culturação dos fugitivos da escravidão, negros e índios, além dos brancos excluídos da sociedade açucareira. A guerra permanente contra a escravidão soldava a solidariedade do povo em torno de uma identidade quilombola.

Além de território, povo e identidade, desenvolveu-se em Palmares um modelo de economia auto-sustentável, regulada por instituições sociais de justiça e de governo. Portanto, estava em curso um processo de formação de um estado nacional multi-étnico, fundado na cooperação do trabalho livre e organizado a partir das referências culturais africanas. Esta foi a primeira formulação de um projeto de estado nacional brasileiro, em um momento em que a sociedade colonial portuguesa, mesmo após a vitória de Guararapes contra os holandeses, estava inteiramente empenhada na reconquista da África e na reconstrução do Império Atlântico Português.

Zumbi fincou pé em Palmares e aceitou a guerra de posição para defender a possibilidade de um Brasil livre, liderado pelos africanos. Este foi o verdadeiro sonho de Zumbi, que valia o sacrifício e valeu a experiência como legado histórico para as lutas contemporâneas do povo brasileiro. O exemplo de Zumbi é vivo, hoje, não pelo aspecto guerreiro, mas pelo aspecto político. Afinal sabemos todos que a guerra é uma dimensão terminal da política. Os milhares de quilombos que se organizaram nos duzentos anos seguintes, resistiram e enfraqueceram a escravidão, mas nenhum deles conseguiu formular um projeto de estado e de sociedade alternativos à monarquia escravista. O movimento abolicionista, a partir dos anos sessenta do século XIX, conseguiu mobilizar a mais ampla frente popular contra a escravidão, mas não produziu nenhum projeto político, social e econômico para o pós-escravidão. Isto se demonstra em nossa História pela inteira desarticulação do negro brasileiro no dia seguinte ao Treze de Maio. Sem projeto de sociedade, ficou dilacerado entre o projeto do Terceiro Reinado da gratidão à princesa e o projeto da República dos grandes fazendeiros. O negro brasileiro foi esmagado pelo imigracionismo e pela exclusão política e social, perdeu todos os aliados da véspera, virou um sub-cidadão.

Hoje, no momento em que o movimento negro brasileiro alcança vitórias importantes e o governo da República incorpora de uma maneira sincera o compromisso com a igualdade racial, não podemos esquecer o exemplo de Zumbi. Não basta lutar contra o racismo e contra a exclusão social através de múltiplas políticas de ações afirmativas. É preciso construir um modelo político e econômico para o Brasil, que consagre e igualdade racial como componente central da democracia. Como em Palmares, não basta lutar contra a desigualdade. Devemos construir o sonho da liberdade, o estado feliz do não abatimento, segundo os revolucionários negros da Bahia em 1798. Este é o sonho palmarino de um país de todos os brasileiros.

Valeu Zumbi !