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Visitante Indesejado (Conto do livro Sete Histórias de Negro- I)

Ubiratan Castro de Araújo

As rezas eram uma folia. A novena de São Roque da Tia Do Carmo rivalizava-se com a trezena de SAnto Antônio da Tia Nininha. Cada noite de reza tinha um padrinho que financiava o mingau. Tia Do Carmo era viciosamente prmissiva. Antes mesmo da reza, ela liberava generosos canecos de mungunzá para a garotada. Tia Nininha era, em oposição, opressivamente mandona. No Santantônio dela, quem não berrasse com fé: -Glo-ri-ô-ôso Sant-an-tant-tô-nio, não tinha direito a mingau.

Depois da reza, tias, parentas e vizinhas, se reuniam para o salutar exercício de resenha da vida alheia. Elas cortavam, costuravam e bordavam desventuras, fraquezas e malfeitos de amigos e de inimigos. Só os presentes escapavam, esquanto aí estivessem. Para não serem entendidas, ou mesmo por pudor e superstição, usavam palavras e expressões estranhas ao nosso vocabulário. Ao invés de “botar chifre no marido”, elas falavam “serrar as canelas”. Por isso, todas as vezes que eu entrava na casa do vizinho, ficava olhando para as canelas dele, intrigado com a falta de cicatrizes. Dos frescos, dizia-se que eram “falsos ao corpo”. Os órgãos sexuais tinham nomes diferentes. O feminino era conhecido como “a perseguida” e o aparelho masculino completo era denominado de “berloques de São Brás”.

Quando uma sobrinha grávida entrava na roda, todas riam muito e exclamavam:

– Menina, comeu feijão azedo!

A assembléia do DIVA ( Departamento de Investigação da Vida Alheia) ficava triste, quando o assunto era a visita de Bernardo à caasa de um parente ou conhecido.

– Bernardo está na casa de fulano há três dias.

Todas tremiam.

Bernardo era o substitutitvo da palavra que não se podia pronunciar: fome. Este era o grande terror de todas as famílias. Ela era epidêmica, como na crise de 1929. Ela era sazonal, no tempo do paradeiro, meses em que não se exportava cacau em Salvador. Ela era terrível em momentos de doença e morte nas famílias.

Bernardo também andava mancomunado com os maus procedimentos. Maridos cachaceiros, que se desempregavam para cair na gandaia, deixavam a família aos cuidados do Bernardo. Homens mulheristas, espécies de mulherengos militantes, gastavam o dinheiro com as raparigas e não levavam pra casa senão seus próprios “berloques”. Nestes casos, algumas não se continham e saía o palavrão:

– Pica pura dá gastura!

Alguns casos mereciam atenção especial. As frequentes viitas de Bernardo à casa do Tio Bené eram o motivo de debates apaixonados. Esta era a principal bandeira de luta do temido PCC, o Partido Contra Cunhadas. A culpada de tudo era Vilma, coitada. Era uma mulher muito educada, muito atenciosa com todos, mas chegada a dindinha, ou seja, preguiçosa. Ela, a cunhada, tinha transformado o valoroso ex-sargento do Corpo de Bombeiros. Ela o obrigou a dar baixa da Bomba, porque chorava o tempo inteiro, com medo que o seu amado se acidentasse em algum incêndio. Tudo fingimento, diziam as militantes do PCC. O que as cunhadas não podiam esconder era o grande carinho que um demonstrava pelo outro. Eles formavam um belo casal. Ambos de boa altura, de pele bem escura e lustrosa, cabelo preto, bem liso como o dos cabolcos, eram da qualidade que o povo chama de Cabo Verde. Mas nem isso escapava da língua das cunhadas.

–De que adianta tanto amor sem responsabilidade?

-Fizeram 10 filhos que não podem criar.

–E, mais a mais, Bené não se compreende que é preto–dizia a feroz tia Nininha. Pensa que está em Roliúde pra viver de romance….

Depois de trabalhar com a sogra, em uma barraca de comida, no Mercado Modelo, tio Bené voltou a viver do seu ofício de carpinteiro, trabalhando em domicílio. Levantava cumieiras, consertava móveis, repregava assoalhos e escadas. Sua fraqueza era a clientela. Trabalhava para um público pobre e de renda instável. Recebia muitos calotes e os fregueses demoravam de pagar. Esta incerteza o tornava um cliente indesejado para os agiotas. A única salvação eram as irmãs.

De vez em quando aparecia uma prima, meio excitada e muito envergonhada, chamava minha mãe no canto, e murmurava:

– Tia, Bernardo está lá, há dois dias.

Essa notícias colocava a família em xeque. Como descobrir sobra em um orçamento tão regrado e todo comprometido? A solução mais frequente era a gavetinha da máquina Singer. Parecia mesmo que a única utilidade das costurinhas que minha mãe fazia era socorrer os irmãos.

Aquelas visitas dóiam muito. Havia um sentimento de revolta e solidariedade com os queridos primos, que não podia se manifestar por meio de nenhum gesto ou atitude pública. Afinal, os vizinhos não deviam perceber nada. Aquilo era um segredo de família. Ficava também, um sentimento de culpa. Porque eu era tão gordo e os meus primos recebiam tantas visitas de Bernardo?


Ubiratan Castro de Araújo é doutor em História, membro da Academia de Letras da Bahia (ALB) e diretor da Fundação Pedro Calmon

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Senado da Câmara de Salvador

Uma das boas novidades da eleição 2012 em Salvador é apresentação de algumas candidaturas inesperadas à vereança. Uma delas é a do Dr. FRANCISCO WALDIR PIRES. Seu estado de saúde é admirável. No mercado de usados seria um Mercedes lindão que só foi, e continua sendo, cuidado por mulher. Aliás, por mulheres admiráveis. É portador do mais completo currículo político do Estado da Bahia. Desde 1950 até hoje exerceu cargos públicos, eletivos e de confiança, inclusive governador do Estado da Bahia. Este homem, com currículo de senador, apresenta-se humildemente a um cargo habitualmente reivindicado por principiantes: vereador de Salvador!

Declaro para quem interessar possa que mais uma vez votarei em Dr. Waldir. Vota-se em quem se admira e Dr. Waldir continua merecendo a minha admiração. Até 2003, ele era para mim o herói anti-carlista. Em 2003 o conheci em Brasília como ministro-chefe da Corregedoria Geral da União do Governo Luiz Inácio Lula da Silva. Ele constituiu certamente o mais eficiente grupo de ação governamental contra a corrupção desta República, formado pelo atual Jorge Hage Sobrinho e pelo Dr. Navarro de Brito Filho. Eles puseram em marcha o mais amplo, eficiente, o mais democrático sistema de detecção de erros e dolos na gestão dos dinheiros público, em todos os municípios e estados brasileiros. Dou um depoimento pessoal: o apoio da CGU foi fundamental para a correção das ações da Fundação Cultural Palmares do Minc, sob minha administração (2003-2006).

No momento da crise do chamado “mensalão”, a importância do velho ministro foi fundamental. Todos nós, jovens militantes do PT, pela primeira vez no exercício de cargos púbicos em Brasília, éramos presa fácil do golpe congressual. Éramos tangidos por telefone, nas filas do mercado. Alguns queriam rasgar a carteirinha do PT, outros chegaram a encaminhar uma volta derrotada para seus municípios. Resistimos porque D. Waldir nos reuniu a todos, falou de sua história da luta contra a corrupção desde o tempo do Lacerda com o IBAD e de toda as pressões golpistas contra Getúlio, Juscelino e Jango. Desesperar jamais. Era preciso trabalhar e defender Lula do golpe. Naquele tempo, Dr. Waldir foi o grande professor. Fico feliz pelos jovens vereadores do PT que terão a oportunidade de aprender a boa política nesta legislatura, lado a lado com Waldir Pires.

Entendo também que Dr. Waldir nesta legislatura municipal é uma presença estratégica de um intelectual e político de trânsito internacional no “staff” diretivo da cidade. Aqui estarão lideranças intelectuais, políticas, culturais e empresariais que demandarão um diálogo qualificado com a Cidade da Bahia.

Compartilho esta minha decisão de voto com todos os companheiros, pois acredito que para a construção de uma nova Bahia, precisamos da experiência, da ética, da solidez tranqüila de um sábio, de um Velho Baiano no secular Paço da Câmara da Cidade do Salvador, na Baía de Todos os Santos. 



Ubiratan Castro de Araújo 
Doutor em História pela Universidade de Paris-Sorbonne 
Da Academia de Letras da Bahia 
Eleitor de Francisco Waldir Pires

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POR UMA REFORMA CONSTITUCIONAL


Publicado no jornal A Tarde, edição de 04 de setembro de 2012 (Editoria Opinião, pág. 3)

Após 24 anos de vigência da nossa Constituição, já temos visibilidade de algumas reformas necessárias. Há impropriedades relativas à própria organização do estado que urge resolvê-las.
Uma delas é o federalismo brasileiro. Nossa tradição e nossas leis são fortemente imperiais e unitárias. O pacto federativo serve apenas para acomodar as elites regionais. O resultado é a desigualdade da qualidade de serviços prestados aos cidadãos comuns do Brasil. O caso mais gritante é o da segurança pública, definida como competência dos estados-membros. Somente o Distrito Federal e os estado de São Paulo e Rio têm condições de investimento e manutenção minimamente apropriados. Entendemos que os repasses de recursos através de transferências e fundos são largamente insuficientes para prover as necessidades estaduais. Para piorar, entra em ação a demagogia política. Recentemente, o Congresso Federal deliberou a implantação de um piso salarial unificado para todo o Brasil, referenciado pelos estados mais ricos. Não deu outra: os estados mais pobres não tiveram como honrar uma decisão federal e passaram a sofrer uma pressão irresistível para pagar proventos bem acima de sua capacidade. Todos vimos como esse conflito manifestou-se na greve dos policiais na Bahia, com graves transtornos para a população e com o comprometimento da governabilidade no estado. O correto seria a nacionalização da Segurança Pública.
    Outro ponto fraco de nosso federalismo é a repartição das competências na educação nacional. A fórmula ensino fundamental municipal, ensino secundário estadual e ensino superior federal está ultrapassada. Os três níveis de ensino são igualmente importantes para a formação do cidadão brasileiro, mas as capacidades financeiras das esferas da federação são desproporcionais. O mercado privado de educação mostra esta realidade sem a menor hipocrisia. A mensalidade de uma escolinha maternal é mais cara do que a maioria das faculdades particulares. Os municípios, mesmo os metropolitanos, são largamente deficientes para assumirem a pré-escola e o ensino primário. O que salva as aparências são as transferências federais, os recursos do FNDE. Quando tudo dá certo é uma política federal de sucesso. Quando dá errado a culpa é dos prefeitos. O insucesso do ensino público estadual é reconhecido por lei. As políticas afirmativas reconhecem que o cidadão brasileiro que foi educado na escola pública é incapaz de concorrer com o brasileiro rico que pode pagar o ensino privado. Para compensar esta desigualdade, muito justamente o executivo e o legislativo apoiam as reservas de vagas, ou cotas, nas universidades para os egressos da escola pública. Sempre estive na 1ª fila dos que defendem as políticas de cotas, mas não nego que sinto muita tristeza ao lembrar o que foram colégios públicos como o Instituto Normal Isaías Alves e o Colégio Estadual da Bahia-Central onde me formei nos anos 50/60. Ao invés de coordenar a difamação do governador do estado, o prof. Rui da APLB deveria lutar para remover essa mácula de um péssimo ensino público que desqualifica os professores sob sua liderança.
Acredito que uma corajosa reforma constitucional resolveria estes problemas. Vivi sete anos na França. Vi funcionar a Escola Republicana, unificada nacionalmente, exclusiva, tal como foi implantada pelo grande educador Jules Ferry. Cada cidadão francês formado pela escola pública tem uma chance de competição em um concurso. Esta escola pública é um contrapeso às desigualdades geradas pelas diferenças de talento individual, de família e de classe social. O Brasil necessita de uma escola pública que opere pela igualdade dos cidadãos. Que tenham o mesmo ponto de partida os meninos da Amazônia e os meninos dos Pampas. Só o governo federal pode implantar esta escola republicana.
Há recursos, sim! Os royalties da exploração do Pré-sal são federais, a serem usados pelo Governo da República para o atendimento ao povo brasileiro e nunca como um troco da politicagem rateado entre Governadores e prefeitos.á recursoH Eu acredito na escola republicana. Para tanto, é preciso reconstruir a própria República no Brasil, através de reformas constitucionais.
Ubiratan Castro de Araújo
Da Academia e Letras da Bahia